Nise da Silveira: Biografia, obras e o legado na psiquiatria brasileira

No coração do subúrbio do Rio de Janeiro, no bairro Engenho de Dentro, atravesso a cancela e me deparo com o letreiro: Centro Psiquiátrico Pedro II. No caminho de chão de concreto, passo por prédios abandonados, com grades em portas e janelas, rabiscos nas paredes brancas envelhecidas e escurecidas pelas sombras das árvores.

Chego à portaria do Museu da Imagem do Inconsciente. A partir dali descortina-se uma história que jamais deve ser esquecida.  Adelina Gomes, Fernando Diniz, Emygdio de Barros, Carlos Pertuis e Raphael Domingues… São pessoas em sofrimento mental que, assim como outras que passaram por tratamento ali, se expressaram por meio da arte e hoje assinam telas e esculturas que ganharam o mundo.

Por meio delas, é possível conhecer melhor sobre a mulher responsável por revolucionar a psiquiatria no Brasil, a doutora Nise da Silveira (1905-1999), que nasceu em Maceió, estudou em Salvador, viveu no Rio, e em fevereiro de 2025 completaria 120 anos.

Quem foi Nise da Silveira

Filha do professor e jornalista Faustino Magalhães e da pianista Maria Lídia da Silveira, aos 16 anos ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia, sendo a única mulher em uma classe com 157 estudantes e uma das primeiras, em 1926, a graduar-se médica no Brasil. No ano seguinte, mudou-se para o Rio de Janeiro com o marido, o médico sanitarista Mário Magalhães da Silveira.

Moradora de Santa Teresa, teve como vizinhos o poeta Manuel Bandeira e o líder comunista Otávio Brandão. Nos anos 1930, ao mesmo tempo em que se aprofundava na psiquiatria, militou no Partido Comunista Brasileiro (PCB) e na União Feminina Brasileira, sendo uma das poucas mulheres que assinou o “Manifesto dos trabalhadores intelectuais ao povo brasileiro”.

Em 1933, estagiou na clínica de Antônio Austregésilo, considerado o precursor da neurologia no Brasil. No mesmo ano, foi aprovada em um concurso de psiquiatria e começou a trabalhar no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental do Hospital da Praia Vermelha.

De personalidade reconhecidamente subversiva e corajosa, foi denunciada por uma enfermeira por ter livros marxistas em sua estante. Naquele tempo, o Brasil vivia o regime de exceção de Getúlio Vargas, e ela tornou-se suspeita. Foi capturada e permaneceu no presídio Frei Caneca por 18 meses até 1937. Dividiu a chamada Sala Quatro, dedicada às mulheres, com Olga Benário. Lá, conheceu o escritor, também alagoano, Graciliano Ramos, e se tornou amiga e personagem da clássica obra Memórias do Cárcere.

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Em liberdade, Nise se debruçou sobre os livros, que ainda estão reunidos em sua biblioteca —cinco corredores repletos de exemplares de medicina, filosofia e ficção. Ocupa um ambiente do complexo do Museu da Imagem do Inconsciente, bem ao lado do ateliê onde atuais clientes (ela não usava a expressão paciente) ainda se dedicam à pintura, modelagem e outras artes.

Ali, também estão exemplares de seus próprios livros. Estudou a obra do filósofo holandês Baruch Spinoza, do século XVII. Brincou com o tempo, redigiu cartas de questionamentos a ele, e, em 1995, publicou Cartas a Spinoza, por exemplo. Hoje, o arquivo pessoal foi contemplado pelo Programa Memória do Mundo da Unesco, que identifica conjuntos que têm valor de patrimônio documental da humanidade.

Nise da Silveira não acreditava na violência como forma de cuidado com as pessoas com transtornos mentais, mas sim no poder das artes e da culturaArquivo Nise da Silveira/Divulgação

O grande marco de Nise da Silveira

O período de privação da liberdade a influenciou, especialmente em seu olhar sobre a loucura. Com o enfraquecimento da ditadura do Estado Novo no Brasil, a Dra. Nise, como ficou conhecida, retomou a carreira. Em 1944, foi inserida no serviço público brasileiro e passou a atuar no Centro Psiquiátrico Pedro II, complexo onde se encontra o Museu das Imagens do Inconsciente, fundado por ela em 1952, que exibe, neste momento, a exposição “Ocupação Nise da Silveira”, que já passou pelo Itaú Cultural, em São Paulo — em 2024 foram recebidos cerca de 13 mil visitantes.

Em vez de arquivos metálicos com páginas infinitas de prontuários médicos, existe nos bastidores um verdadeiro acervo artístico: pastas com telas e mais telas produzidas por artistas-clientes. Estima-se cerca de 400 mil, sendo 128 mil delas catalogadas, 272 reunidas com descrição no livro Imagens do Inconsciente, assinado pela própria doutora. Noventa estão em exposição.

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Autodenominada uma psiquiatra rebelde, ela recusou aplicar a pacientes psiquiátricos tratamentos invasivos e violentos, como a lobotomia, o eletrochoque, a camisa de força e o confinamento prolongado, usados comumente até então, e que visavam mais ao controle dos pacientes do que à sua recuperação. Por causa dessa “rebeldia”, ela foi transferida para o departamento de Terapia Ocupacional, atividade menosprezada pelos médicos. Assim, criou ateliês de pintura e modelagem.

O uso da expressão simbólica e da criatividade revolucionou o tratamento de doenças mentais no Brasil, método reconhecido mundialmente hoje. As atividades não ficaram restritas ao Pedro II. Ela fundou a Casa das Palmeiras, em 1956, uma clínica destinada a reabilitar ex-pacientes de instituições psiquiátricas.

Dra. Nise trocou cartas, endereçadas e correspondidas, com o fundador da psicologia analítica, Carl Gustav Jung, que juntamente com Sigmund Freud foi um dos mais respeitados pensadores de seus tempos. Jung a estimulou a apresentar uma mostra das obras de seus clientes, que recebeu o nome A Arte e a Esquizofrenia, ocupando cinco salas no II Congresso Internacional de Psiquiatria, em 1957, em Zurique, Suíça. Naquele ano, ela se mudou para lá, iniciou estudos, recebeu supervisão analítica de ninguém menos que Marie-Louise von Franz, uma importante continuadora do trabalho de Jung.

De volta ao Brasil, formou em sua residência — de portas sempre abertas ao conhecimento, conforme registrado em diversas fotografias em preto e branco — o “Grupo de Estudos Carl Jung”, que presidiu até 1968, quando foi publicada no Brasil a primeira edição do livro Jung: Vida e Obra.

Em dezembro de 1974, às vésperas da aposentadoria de Nise, um grupo de cerca de 200 colaboradores e importantes personalidades no campo da cultura, das artes e da política, criou a Sociedade Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente (SAMII) — hoje são em torno de 90.

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Desde então, são responsáveis por proteger e divulgar o legado. Entre as conquistas está, por exemplo, o tombamento de parte do acervo pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). E, entre as lutas, a transformação do antigo hospício em um parque público e a digitalização do acervo.

“O mundo sabe que a doutora existe, reconhece o seu legado. Agora é hora de acessá-lo”, afirma Christina Penna, vice-presidente e secretária da Sociedade. “Não é sobre arte contemporânea ou popular; virgem, bruta ou marginal; mas sim sobre a arte humana”, afirma.

Por sua trajetória, a Dra. Nise recebeu inúmeros reconhecimentos ao longo da vida. Foi agraciada com o grau de oficial da Ordem de Rio Branco, a Ordem Nacional do Mérito Educativo do Ministério da Educação e a Medalha Chico Mendes do grupo Tortura Nunca Mais. Foi eleita personalidade do ano (1992) pela Associação Brasileira de Críticos de Arte.

Nise da Silveira deixou um legado para o Brasil

Seu legado também inspirou a criação de museus, centros culturais e instituições terapêuticas no Brasil e no exterior, como em Portugal, França e Itália. Em 2015, o longa Nise — O Coração da Loucura, protagonizado por Glória Pires, eternizou sua sensibilidade e pioneirismo no cinema.

Para a atriz, a característica mais marcante da Dra. Nise foi a sensibilidade para olhar o outro. “O tempo foi curto para me preparar para interpretar uma vida de quase 100 anos. Uma passagem que muito me marcou foi logo no início do trabalho, quando um dos clientes pergunta a ela o que deveria fazer na marcenaria. Ela sugeriu que ele esculpisse um livro. Dias depois, ele apareceu com uma obra envolvido por um coração. Ela então questionou: eu não disse para você fazer um livro? E ele: doutora, para que serve um livro sem o coração? Interpretar Nise foi um presente”, conta Glória Pires.

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Nise morreu aos 94 anos, em 30 de outubro de 1999, no Rio de Janeiro, devido a uma parada cardíaca. Atravessando aqueles prédios, em princípio abandonados, entendi no caminho de volta o motivo da sensibilidade que eles nos despertam. É preciso conhecer a história que se passou no interior.

“O legado de Nise transbordou: começou em uma sessão terapêutica ocupacional em um hospital público do subúrbio do Rio e alcançou diversas áreas, como a medicina, direitos humanos e arte”, afirma o músico e museólogo Eurípedes Gomes Cruz Jr., que acabou de lançar o livro Do Asilo Ao Museu – Nise da Silveira e as Coleções da Loucura (editora Hólos).

Ele trabalhou por 25 anos junto com a doutora, e percorre a história das obras produzidas por pacientes psiquiátricos ao longo do último século, abrangendo coleções existentes em vários países. “No momento em que a humanidade faz indagações sobre saúde mental, Dra. Nise é referência, continua sendo pioneira e revolucionária. Para entender uma sociedade adoecida, precisamos levar em consideração o universo que está dentro de nós.”

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