“Na mina é como na floresta: o trabalhador fica desamparado de tudo. Mas aqui [no garimpo] é mais por negligência e por egoísmo. […] Assim se brutaliza o garimpeiro, entorpecendo suas boas qualidades, quando não é pneumonia, o béri-béri [doença causada pela deficiência de vitamina B1] ou a terçã maligna [malária] que o liquidam de vez. […] Mas é duro, duríssimo mesmo, é verdade ou não é?”
O trecho é do livro A Mulher do Garimpo, publicado em 1976 pela jornalista Nenê Macaggi, sobre sua viagem à Roraima. A cena, no entanto, poderia ter sido escrita hoje.
O mercado global de joias, que impulsiona a extração de ouro e pedras, deve crescer para US$ 308 bilhões até 2030, segundo a Fortune Business Insights.
Em 2021, o Brasil estava entre os 15 maiores produtores mundiais de joias. “Mas quase nenhum consumidor sabe exatamente de onde vem o ouro”, diz Larissa Rodrigues, gestora do Instituto Escolhas (@institutoescolhas), organização voltada para o desenvolvimento sustentável.
O garimpo é legal quando há Permissão de Lavra Garimpeira (PLG), um documento emitido pela Agência Nacional de Mineração, que prevê licença ambiental e descrições geológicas para a extração.
No entanto, segundo levantamento do Instituto Escolhas, cerca de 54% do ouro brasileiro é ilegal — isto é, proveniente de locais sem a PLG, incluindo de terras onde a atividade é proibida, como unidades indígenas e de conservação.
Os problemas do garimpo ilegal
Essa atividade criminosa aumentou 787% entre 2016 e 2022, conforme o Instituto de Pesquisas Espaciais, incentivada pelo enfraquecimento de políticas ambientais.
Para os indígenas, os garimpeiros trouxeram fome ao desestabilizarem o ecossistema das comunidades, e doenças, como a malária. Na reserva Yanomami de Roraima, 363 indígenas morreram em 2023, um aumento de 6% em relação a 2022, mesmo com as novas tentativas do governo, que busca controlar a emergência.
Em questões ambientais, além de impulsionar o desmatamento, o garimpo usa mercúrio para separar o ouro de outros sedimentos.
A cada ano, 150 toneladas desse metal tóxico são despejadas na Amazônia, segundo a WWF. Ele entra na cadeia alimentar pelas plantas aquáticas, que depois são ingeridas pelos peixes — que, por sua vez, são fonte de alimento para ribeirinhos e indígenas. Essas populações têm níveis de infecção por mercúrio superiores ao limite estabelecido pela Organização Mundial de Saúde.
Os peixes contaminados pelo material tóxico afetam o sistema nervoso, digestivo, imunológico e excretor de um indivíduo, podendo haver também problemas na formação de fetos. Para além disso, os próprios trabalhadores do garimpo ficam expostos ao metal pesado, ao inalar gás tóxico de mercúrio.
Os garimpeiros geralmente são moradores da região com poucas perspectivas de emprego. Entre 2017 e 2022, 187 pessoas foram resgatadas de condições de trabalho análogas à escravidão em garimpos no país.
Em Roraima, eles geralmente não usam nem equipamentos de proteção, têm jornadas de até 12 horas diárias e são expostos a máquinas barulhentas, segundo pesquisa da Universidade do Estado de Mato Grosso divulgada em 2019.
Organizações criminosas se aproveitam da mão de obra barata para suas atividades. “Quando se desmobiliza um garimpo no meio da Amazônia, você não prende o dono do garimpo”, diz Larissa Rodrigues.
Segundo a Polícia Federal, o PCC (Primeiro Comando da Capital), por exemplo, se infiltrou na terra Yanomami. O grupo não apenas comandava o extração, mas casas de prostituição e pontos de droga que se estabeleceram ao redor da área.
De onde vem o ouro?
Para complicar ainda mais a questão, é comum que o ouro sujo seja vendido juntamente com o legal. Isso porque, para vender metal para uma Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários (DTVM), as empresas autorizadas a comprá-lo, é necessário apenas que se preencha um formulário e uma nota fiscal indicando onde o ouro foi encontrado. Em outras palavras, é presumida a boa-fé do vendedor, e quem compra o ouro não checa se as informações são verdadeiras. Nada impede que alguém forneça informações erradas sobre a procedência daquele metal.
Para uma joalheria ter certeza da procedência, ela geralmente compra diretamente das mineradoras, como é o caso da Vivara, cuja fornecedora é a AngloGold, que atua em Minas Gerais.
A grande maioria, no entanto, compra das DVTMs mesmo, e 90% do ouro do Brasil é exportado para países como Canadá e Suíça ou ainda o Reino Unido, diz Larissa. Segundo investigação da Repórter Brasil em 2021, a BP Trading, principal exportadora de ouro do Brasil, negociava com empresas investigadas por comprar metal vindo de terras indígenas.
Em 2023, o Supremo Tribunal Federal suspendeu a presunção de boa-fé na venda de ouro. Agora, novas regras para a transação estão tramitando no Congresso. No mesmo ano, a Receita Federal passou a exigir que notas fiscais para venda de ouro sejam eletrônicas, permitindo que órgãos governamentais acompanhem a comercialização em tempo real com mais facilidade.
A reciclagem é uma saída possível
Ao mesmo tempo, joalherias vêm se movimentando para se afastar das questões mais problemáticas da extração do ouro e de pedras preciosas.
A Pandora, por exemplo, anunciou em fevereiro que passou a usar apenas metais reciclados em suas peças. “Metais preciosos podem ser reciclados indefinidamente sem qualquer perda de qualidade”, diz Martin Pereyra Rozas, vice-presidente sênior da marca. “Prata originalmente extraída séculos atrás é tão boa quanto nova.”
A pegada de carbono da prata reciclada é um terço da prata extraída. Já a reciclagem do ouro emite menos de 1% de carbono do que viria de uma nova extração, segundo a Pandora —só não resolve a questão da rastreabilidade, já que não é fácil saber a procedência do ouro original.
Além do ouro, pedras como o diamante são um desafio similar. A sua extração envolve desmatamento, emissão de gases do efeito estufa e perigosas condições de trabalho. Dois terços das pedras do mundo vêm da África, continente famoso pelos seus “diamantes de sangue”, extraídos para financiar guerras.
A joalheria brasileira GAEM, fundada por Julia Blini e Luna Nigro em 2021, importa lab-grown diamonds, isto é, diamantes feitos em laboratórios, idênticos aos naturais.
O processo economiza água e garante que a peça não tenha relação com conflitos. “Além de termos um produto com toda essa proposta por trás, temos um preço competitivo”, diz Luna Nigro. Em termos de custo, um diamante de laboratório é bem mais acessível do que a pedra extraída da natureza, o que impacta no valor de venda.
A GAEM conseguiu o selo B, que certifica globalmente boas práticas socioambientais. A joalheria também usa metais reciclados em sua produção, em parceria com o Yby Bank, um banco de metais de reuso que trabalha com certificados em blockchain. “É muito legal quando compramos uma peça e vemos se ela foi uma joia antiga, de onde veio”, diz Julia Blini.
Em 2023, IBGM (Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos) e ICMTC (Conselho Internacional de Rastreabilidade e Certificação Mineral) apresentou um modelo de certificação em blockchain. A ideia, em fase de testes, é que o certificado guarde informações sobre todo o caminho do ouro até o consumidor final.
O nível de interesse de players do setor, tanto DVTMs quanto refinarias, pelo novo sistema tem sido “surpreendente”, afirma com ênfase Ecio Morais, diretor do IBGM.
“As grandes cadeias joalheiras do mundo suspenderam a aquisição de ouro do Brasil por conta dessa imagem reputacional”, diz Roberto Cavalcanti, presidente do ICMT. “Nós chegamos ao fundo do poço. Temos que atuar para mitigar esse problema.”
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