Referências, saudades e “outras coisitas mais” aquecem o coração da chef Ana Bueno ao abrir as portas de Paraty para quem é de fora. Aqueles curiosos por conhecer a cidade no Sul do estado do Rio de Janeiro para além dos estereótipos encontram nessa paulista nascida em São José dos Campos a anfitriã ideal.
Arrebatada pelas águas e belezas do destino histórico, Ana ainda era menor de idade — tinha 17 — quando pegou as (poucas) malas e cuias para morar na vizinha Praia do Cachadaço.
Dois anos depois, mudou-se para o famoso centrinho de pedras de paralelepípedo e nunca mais deixou de fazer parte da comunidade local. A certeza de ter sido chamada para lá teve a ver, principalmente, com as conexões que engrossaram raízes por ali. “Gosto de mostrar Paraty de um jeito diferente, com olhos de quem vive aqui e tem no cotidiano a companhia de pessoas, lugares e culturas únicas”, afirma Ana.
Entre as muitas empreitadas que ampliaram o horizonte da região e ajudaram a consolidar sua vocação gourmet estão o evento Folia Gastronômica, que Ana organizou entre os anos de 2003 e 2018, o Mapa do Gosto, uma ação social de incentivo do comércio justo para os pequenos produtores, e o Mulheres da Costeira, de capacitação e formação de empreendedoras. É no Banana da Terra, porém, que toda a sua multiplicidade e poder de ação vêm à tona.
Tradição de 30 anos
Sinônimo da alta gastronomia caiçara, o casarão que abriga desde 1994 o restaurante sintetiza a vocação agregadora de Ana. Da farinha de mandioca — moída numa casa localizada na Estrada Paraty-Cunha e acrescida de um pouco de polvilho que garante uma textura incrível — até a decoração com peças de artesanato da cultura quilombola selecionadas pessoalmente pela chef: tudo inspira e expira biodiversidade e história.

Seu prato mais clássico, o peixe com banana, é feito com o lombo do pescado maturado e cozido em molho com especiarias e servido com purê de banana e telha de pirão. Garantir a qualidade do ingrediente é uma das principais preocupações, levando em consideração ainda a abertura do público (tanto os mais fiéis quanto os estreantes na casa) para testar outros sabores.

“Eu gostaria que as pessoas ousassem um pouco mais e saíssem do robalo, da garoupa, desses peixes preferidos. Hoje, por exemplo, estamos comprando a prejereba, de carne branca, que eu adoro!”
É no dia a dia próximo com os peixeiros, incluindo os pescadores que conhece desde menina, quando vendeu tortas, sanduíches e bolos batidos à mão na Praia do Cachadaço, de Trindade, que as melhores decisões vão sendo tomadas para o menu. “É muito mais fácil ir ao açougue e encontrar um contrafilé. Não adianta falar que quero esse tal peixe, nem sempre é possível.”
Em suas mãos habilidosas, que aprenderam a cozinhar mirando na subsistência, mas adquiriram técnica impecável em cursos no exterior, os frutos do mar ganham autenticidade.
“Penso no cardápio considerando receber as pessoas numa cidade onde elas estão visitando. Quero mostrar os produtos locais, mas também ser a casa delas fora de casa. Poderia até fazer menos pratos, mas me preocupo em atender as pessoas que vêm aqui. Tenho dois pratos com camarão, por exemplo. Um descascadinho e outro grande, um pouco mais rústico, que não é todo mundo que gosta”, explica Ana.

É nessa segunda versão que mora uma interessante combinação de notas ácidas e doces. Levinho, combina a coalhada com o sabor picante do molho romesco, feito de pimentão vermelho, tomate maduro, pimenta calabresa seca, páprica defumada e amêndoas tostadas com casca. A porção de camarões VG flambados na frigideira com cachaça ganha ainda a companhia de pão de alho fresco e negro, uma delícia.

Para a sobremesa, um doce típico de Paraty, o sonho, ganha uma versão mais sentimental (e apetitosa). Recheada de goiabada e queijo cremoso Catupiry, a massa de aipim é servida com sorvete de goiaba e algodão-doce.
“Nunca me esqueci de quando eu comi meu primeiro algodão-doce. Meu avô tinha uma uma loja lá em São José dos Campos, passou um senhor vendendo e me deu um algodão-doce. Com 5, 6 anos, achei aquilo muito sensacional, derretia na boca.”
Sem perder o encantamento de criança com os sabores e as infinitas possibilidades de combinações, Ana é também prática e realizadora quando o assunto é empreender. Para 2025, está com foco claro na ampliação do Banana, que vai ganhar um espaço de eventos para no máximo 80 pessoas e também uma sala de experiências da chef, para receber até 15 pessoas.
Além de uma breve pausa no segundo semestre para conclusão da reforma, o restaurante passa a atender num novo horário ampliado de almoço e jantar, o que demanda aumentar a equipe. “As coisas acontecem na hora certa. Eu sou a piloto desse avião faz 30 anos, eu não posso deixar ele cair, de jeito nenhum. Tenho que botar mais gente para dentro e mandar ver”, diz, pragmática, sem perder o sorriso característico.
Sob sua batuta, hoje, estão 70 funcionários, divididos entre o Banana da Terra, o Café Paraty e o mais recente Casa Paratiana, erguido dentro do alambique da família.
Cachaça e memórias
Para dar vazão à criatividade e também à vontade de honrar as origens caipiras, Ana pensou a Casa Paratiana, inaugurada em 2024. A tradição está presente no filé de carne de sol, servido sobre chapa aquecida com banha de porco e abóbora temperada com cominho, canela e pimenta calabresa, finalizada com raspas de rapadura, cebola-roxa e um pouco de pimenta-do-reino.

Mas Ana não deixa de incorporar outras demandas, como a de receitas vegetarianas. “A comida caipira tem uma tendência a ter mais carnes. Na raiz mesmo, não tem um caipira muito vegano assim, né?”
No seu cardápio, porém, é um bolinho de arroz (sem carne) que brilha na entrada. Temperado com bastante cebola picadinha e repleto de queijo, é o favorito do seu filho caçula, Abel. “Criança é difícil, fala tudo que acha. Se ele gostou, acho que acertei”, brinca a mãe de três.
Para a sobremesa, é imperdível o doce de abóbora feito no fogo baixo, com açúcar, cravo e paciência. Para dar o toque pessoal de Ana Bueno, uma calda de zabaione de cachaça Paratiana, feita lá mesmo.

A decoração inclui itens que Ana e o marido, Casé, garimparam. Alguns objetos antigos, como rádios, bibelôs e até uma coleção de ex-votos, vieram de uma viagem que o casal fez até Salinas, em Minas Gerais.
“Brinquei de casinha montando todo o enxoval do restaurante. Queria aqueles pratos Duralex âmbar que todo mundo tinha, mas não encontrei, precisei colocar os branquinhos mesmo”, conta. Canecas de ágata e toalhas rendadas completam a atmosfera antiga.
Toda nostalgia esconde uma saudade bonita que Ana sente não só de outros tempos, mas da sua própria mãe, que já faleceu. Ela deixou guardada em sua memória a relação de generosidade e confiança que a comida pode inspirar. Quando a filha decidiu fazer a mochila para sair de casa, Dona Inês sentiu um aperto no coração, mas não pôde conter a força do desejo de Ana.
Nas suas esporádicas voltas para casa, preparar uma mesa farta era o jeito da matriarca de demonstrar carinho e preocupação.
“Ela tinha uma coleção gigante de receitas da CLAUDIA, impressas ainda em papel de jornal. Sonhava em um dia ter receitas minhas na revista”, lembra Ana, que não é de esconder as lágrimas. O gosto de um sonho realizado é ainda melhor quando compartilhado.
CRÉDITOS DE PRODUÇÃO
TEXTO Helena Galante
FOTOS Gabi Portilho
EDIÇÃO DE ARTE Mika Nanba
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