Romper o silêncio: o papel do jornalismo na luta contra a violência de gênero

A redução da violência de gênero passa pelo fim do silenciamento que perpetua esses crimes. A denúncia protege a nós mesmas e a outras — é muito difícil que um homem violento faça apenas uma vítima. Eles agem em série, subjugando os corpos de meninas e mulheres, na tentativa de reafirmar o poder que acreditam ter.

O jornalismo é uma arma essencial para aumentar o volume dessas vozes. Muitas vezes, é a única ferramenta que sobreviventes têm para serem ouvidas, ou mesmo para que se faça justiça. Quantos casos conhecemos em que os abusadores só foram parados graças à publicação de acusações pela imprensa?

Cito dois, dentre os mais emblemáticos: João Teixeira de Faria, o autointitulado médium João de Deus, e Roger Abdelmassih, médico especializado em fertilização in vitro. Ambos prometiam fazer milagres e se diziam instrumentos divinos. A aura de onipotência era tamanha que confundia e intimidava suas vítimas, quase todas mulheres vulneráveis, que depositaram naqueles homens um último fio de esperança. 

A crueldade dos relatos chocou o Brasil e obrigou polícias, ministérios públicos e tribunais a agir. Foram as investigações jornalísticas que deram ao país a dimensão das violências cometidas por aqueles seres intocáveis, durante décadas. Sim, décadas. 

Num crime em que são as sobreviventes a sentir vergonha, culpa e medo, os abusadores dependem do silêncio para reforçar e repetir as violênciasiweta0077/Getty Images

Como é possível que um abusador cometa violências sexuais em série, por anos e contra centenas ou milhares de mulheres, sem que ninguém faça nada? A resposta é complexa, mas se apoia em uma palavra-chave: o silêncio.

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Num crime em que são as sobreviventes a sentir vergonha, culpa e medo, os abusadores dependem dessa trinca para reforçar e repetir as violências. É aí que entra o jornalismo: se feito com responsabilidade, ele joga luz sobre essa inversão, devolve a vergonha para o algoz e protege as vítimas. 

Mas nem sempre isso acontece. Porque a mesma imprensa capaz de colocar um abusador na cadeia por vezes se omite, colaborando para a impunidade. É essa a premissa de Silenciadas, lançada em setembro, uma parceria minha com a Audible e a revista piauí

Conto, na série em áudio (ouça aqui), os bastidores de reportagens sobre crimes sexuais, a partir da minha cobertura do caso João de Deus, no jornal O Globo, em 2018, e dos obstáculos que enfrentei até a publicação. Entendi, ali, que nós jornalistas refletimos a misoginia da chamada cultura do estupro, caindo em estereótipos e reproduzindo preconceitos que nos levam a duvidar da palavra da mulher e a diminuir a gravidade de crimes tão hediondos quanto o estupro de vulnerável e o feminicídio. 

Conversando com outros jornalistas, mulheres e homens, sobre coberturas diferentes, de Abdelmassih à família Klein, fica claro que a questão não é de uma ou outra redação — é do jornalismo brasileiro (e, ousaria dizer, de boa parte do globo). A proposta de “Silenciadas” é que a gente olhe pra isso, se eduque, crie protocolos e pare de cometer os mesmos erros. 

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Por um jornalismo feminista que não se acomode na reprodução de hashtags e não caia em armadilhas do clickbait. Um jornalismo que seja empático, sensível, respeitoso e, aí sim, transformador. A quem chama isso de ativismo e parcialidade, pergunto: qual é, para você, a função da nossa profissão, se não defender os direitos humanos? 

Defender a pauta do fim da violência contra a mulher é cumprir um compromisso básico do jornalismo. É jogar luz num buraco fundo e escuro, que ficou tempo demais escanteado, para a conveniência de todo um sistema que abriga e protege homens violentos. Agora, o silêncio acabou — e não tem volta atrás. 

* Cristina Fibe é jornalista, autora do livro “João de Deus: o abuso da fé” (Globo Livros), criadora e narradora da audiossérie “Silenciadas: os bastidores de reportagens sobre crimes sexuais”, lançada em setembro pela Audible e pela revista piauí

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