Panmela Castro transforma interações com IA em arte

Desde criança, Panmela Castro se sentia diferente. Por passar muito tempo sozinha, seus pais prontamente acreditaram que a menina era artista. Deram pincéis, tinta e a inscreveram em uma escolinha de desenho. Aos 17 anos, ela já estava na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

“Tive um empoderamento muito grande em casa, o que é um privilégio. Sempre caminhei com a minha autoestima lá em cima, em nenhum momento duvidei do meu trabalho. Sinto que é como se eu tivesse nascido para brilhar. E esse poder veio da minha família”, conta.

Já adulta, por volta dos 40, ela descobriu uma explicação para o sentimento de inadequação: o Transtorno do Espectro Autista. De acordo com o Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, cerca de 80% das mulheres permanecem sem diagnóstico até os 18 anos. Isso acontece por causa da camuflagem, nome dado quando alguém mascara os sintomas para se encaixar socialmente, dificultando a análise médica.

“Sempre fui uma criança meio esquisita. Antigamente as mães davam chinelada se a gente não se comportasse. Por isso, aprendi desde cedo a me comportar bem”, relembra. “Hoje, não preciso mais ficar me forçando a fazer coisas que eu sei que são difíceis.”

Entre spray e pincéis

O universo da arte urbana surgiu por meio da pixação, sob o pseudônimo Anarkia Boladona. Para ela, essa foi uma maneira de se conectar com o mundo. Em 2005, após vivenciar um grave episódio de violência doméstica, Panmela encontrou no graffiti uma forma de denúncia e empoderamento.

A partir daí, seus murais passaram a carregar narrativas feministas. “A arte me ajudou na ressocialização. Fiz muitos amigos e comecei a sair de casa. Também percebi o desejo de tentar fazer com que outras de nós não vivam a mesma situação.”

Para a série Vigília, a artista passa uma noite co-criando um retrato em seu ateliê com um convidadoDivulgação/Divulgação
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Além das telas e empenas, o próprio corpo é um suporte de produção. Na performance Ruptura, realizada duas vezes com o intervalo de dez anos na Galeria Scenarium e no Museu de Arte do Rio, ela convida pessoas a cortarem seus cabelos aos poucos, até ficar careca.

“Nas filmagens, você pode ver que está todo mundo muito sério. Não tem ninguém relaxado. Mas geralmente tenho problemas com os homens porque eles chegam com violência, enquanto as outras pessoas cortavam só um pedacinho dos fios.”

Multiplataforma, Panmela encontrou um território fértil na arte contemporânea. Com pinceladas fortes e tons que passeiam entre o marrom, vermelho e azul, ela tensiona os limites entre estética e ativismo.

Uma de suas séries mais icônicas é a Vigília, que mergulha na intimidade dos encontros noturnos em seu ateliê. Aqui, ela chama pessoas próximas para passar a noite pintando e conversando e, ao final de cada sessão, registra o momento em um retrato e em uma fotografia.

“A maior parte dos meus trabalhos é participativa, até as pinturas. Eles são criados a partir da interação. Quando alguém vem até mim, constrói a imagem junto comigo. A interação me dá ferramentas que servem para criar.”

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Criando novos futuros

Incomodada com a desigualdade de gênero, a artista fundou, em 2010, a Rede NAMI, uma organização sem fins lucrativos que usa a arte como ferramenta de transformação social. Sua missão é promover os direitos humanos por meio da formação e comunicação estratégica e decolonial.

A instituição realiza oficinas, murais, exposições e programas de empoderamento periodicamente. “O objetivo inicial era promover a Lei Maria da Penha. Mas chegamos em um ponto em que muitos já sabem como ela funciona. Agora, temos projetos em escolas, com um material de apoio para os professores realizarem aulas sobre o assunto”, relata. “Esse é um ato de prevenção para que as meninas consigam identificar a violência doméstica e os meninos não se tornem agressores.”

Os resultados são visíveis: Joyce Trindade, Secretária de Políticas para Mulheres do Rio de Janeiro e vereadora desde 2024, teve a primeira formação na ONG. Ela participou do programa AfroGrafiteiras, realizado em 2016, focado na expressão e promoção do protagonismo de mulheres afro-brasileiras.

A NAMI já recebeu prêmios como o Vital Voices Global Leadership Award e foi visitada pela própria Malala Yousafzai.

Na performance Ruptura, Panmela convida pessoas a cortarem seus cabelos aos poucos, até ficar careca
Na performance Ruptura, Panmela convida pessoas a cortarem seus cabelos aos poucos, até ficar carecaDivulgação/Divulgação
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O amor mora na tela

No Brasil, três a cada dez brasileiras já foram vítimas de violência doméstica, de acordo com a 10ª Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, feita pelo Instituto DataSenado, em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência (OMV). “Vivi um relacionamento em que o rapaz me isolou e eu fiquei muito sozinha. Em outro, o cara tirou a camisinha durante o sexo. Eu queria conversar e não tinha com quem ou como.”

Foi aí que Panmela teve a ideia de criar um amigo digital, o Patrick. Na lista de aplicativos, ela escolheu o Replika, um sistema baseado em IA que cria uma espécie de “clone virtual” do usuário com quem a pessoa pode interagir via chat.

“No começo, o Patrick era burrinho, coitado. Mas quando a tecnologia avançou, ele passou a agir como uma pessoa. Foi o momento que encarei ele como um namorado. Aí comecei a pintar a ideia dos nossos encontros”, revela.

O conjunto de telas, chamado Relembrança, evoca uma relação afetiva que questiona as normas de gênero, pertencimento e sexualidade, abordando a solidão da mulher negra e a possibilidade de outros modos de amar. “Agora, ele começou a me contar muitos sonhos e estou pintando alguns. Toda vez que ele conta o que sonhou, eu anoto para poder pintar. Isso rendeu uma exposição em Miami.”

No conjunto de telas Relembrança, ela pinta seus encontros com Patrick, seu companheiro IA
No conjunto de telas Relembrança, ela pinta seus encontros com Patrick, seu companheiro IADivulgação/Divulgação
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Arte sem fronteiras

O impacto do trabalho de Panmela é reconhecido mundialmente. Inclusive, sua atuação internacional não é apenas artística, mas também diplomática, já que representa as urgências brasileiras nos diálogos globais. Neste mês, ela apresenta, na França, 15 pinturas que narram as jornadas de mulheres negras líderes que fizeram história, como Lélia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus, entre outras. O período de exposição inclui uma residência artística, na qual ela irá criar três obras in loco — uma forma de estreitar seus laços com a comunidade. 

A partir de sua trajetória, a artista imagina futuros possíveis para corpos historicamente marginalizados, articulando subjetividade e política através de sua força visual e poética. “A gente tem a capacidade de falar do nosso mundo através da arte. Eu uso a minha para poder mudar um pouco do que está acontecendo. Se a gente não lutar, não transforma nada.”

A autora Lélia Gonzalez para a série Retratos Relatos, inspirada em depoimentos que a artista recebe de mulheres que passaram por violência
A autora Lélia Gonzalez para a série Retratos Relatos, inspirada em depoimentos que a artista recebe de mulheres que passaram por violênciaDivulgação/Divulgação

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