A sala de Zezé Motta guarda as memórias dos 60 anos de carreira da atriz e cantora. As paredes narram, com fotos em preto e branco, parte da vida profissional e pessoal. Sobre o piano, no centro, Zezé expõe alguns dos mais de 100 troféus recebidos ao longo da vida — são tantos que ela precisou guardar a maioria no Retiro dos Artistas.
Ao notar um deles — o prêmio Mulheres Inspiradoras 2024 — Zezé curva o ombro até o rosto, faz um ligeiro bico e, entre a humildade e o orgulho, solta com humor: “Viu só? Você veio entrevistar uma mulher inspiradora”.
Só se surpreenderia se estivesse ali a mais desavisada das brasileiras. A atriz é um verdadeiro ícone da cultura nacional — em tempos em que essa palavra se tornou tão desgastada, aqui ela tem o significado preciso.
Aos 81 anos, Zezé segue em cena, e com desafios inéditos em sua carreira. Em maio, estreou seu primeiro monólogo, Vou Fazer de Mim um Mundo, inspirado na obra Eu Sei Porque o Pássaro Canta na Gaiola, da escritora norte-americana Maya Angelou.
Na bagagem, acumula dezenas de histórias que nortearam as gerações seguintes. Foi ela a primeira mulher negra a protagonizar um filme no cinema nacional, no papel de Xica da Silva, em 1976, e a primeira a formar um par romântico na principal novela da Globo, a das oito, em 1984.
É uma das musas inspiradoras da canção Tigresa, de Caetano Veloso, cujos versos darão origem a um filme sobre Zezé, que ainda está em fase de produção. E quem não cantou junto pelo menos o refrão do samba Senhora Liberdade, imortalizado em sua voz em 1979?
Nascida em uma família de classe baixa, Zezé Motta cresceu com esforço, generosidade, talento e persistência, construindo uma inspiradora trajetória. E contou também com um bocado de coragem e ousadia.
A trajetória de Zezé Motta antes da fama
Apesar dos perrengues, nunca faltou comida em casa para Zezé e seu irmão, dez anos mais velho. Filha de uma costureira e um pai músico, que cantava em bares de Campos dos Goytacazes (RJ), cidade natal de Zezé, a garota só passou fome quando quis — e para chamar a atenção dos pais.
Aos 6 anos, ao entrar em um colégio interno, a pequena Zezé se rebelou: deixaria de comer até que os pais a tirassem de lá. “Foi um começo muito complicado. Então, eu decidi fazer greve de fome. Mas claro que não contaram para eles. Aí depois de dois dias, eu vi que não estava dando resultado e desisti”, conta, aos risos.
Era a segunda vez que Zezé se via obrigada a morar longe dos pais. A primeira mudança foi aos 3 anos de idade, quando eles a levaram para viver com um tio, que trabalhava como porteiro em um prédio do Leblon. De lá, ela se lembra das brincadeiras com os primos e com uma vizinha um pouco mais nova, uma tal de Marieta.
Três anos depois, os pais se mudaram para uma casa no morro do Cantagalo, em Copacabana — o irmão permaneceu com a avó, em Campos. Sem dar conta de conciliar o trabalho e a educação da criança, colocaram a garota no colégio interno — onde começaria a se apaixonar pelo teatro, fazendo algumas figurações nas peças da escola. Só voltaria a morar com a mãe aos 12 anos.
Do Tablado ao palco: o início da carreira de Zezé Motta no teatro e na música

O interesse pela arte acompanhou Zezé no colégio seguinte. Foi lá que atuou pela primeira vez com um papel principal: interpretou a mãe de Anne Frank, alemã com origens judaicas, vítima do Holocausto. Graças às atuações, a jovem atriz conseguiu uma bolsa completa no Tablado, o principal curso de artes cênicas da época.
Pé no chão, como lembra Zezé, a mãe a obrigou a cursar outra faculdade, para ter uma segunda opção, caso a vida de artista não vingasse. Escolheu o mais curto possível: técnico em contabilidade. Levava os dois cursos ao mesmo tempo e ainda ajudava a mãe com os trabalhos de costura. Numa dessas, enquanto ouviam rádio, Zezé começou a cantarolar Saudade Particular, gravada por Ellen de Lima.
“Cantei para o meu pai. E ele perguntou quantas vezes eu tinha escutado a música. Só disse que, sei lá, tocava toda hora na rádio. Aí ele falou: ‘Acabei de descobrir que você é cantora, porque você aprendeu a letra, a melodia, e não desafinou’”, lembra. Assim, ela e o pai encontraram mais um talento de Zezé, que a acompanharia ao longo da carreira.
Ao fim de quatro anos de Tablado, Zezé apresentou sua peça final. Em uma das montagens, foi abordada pelo ator Flávio Santiago, que queria saber de seu interesse em seguir como atriz profissional. “Se calhar, né, tô aí!”, respondeu. Santiago contou a ela sobre os testes para uma peça de Chico Buarque, uma tal de Roda Viva, que acabaria sendo alvo de censura durante a Ditadura Militar.
O início do estrelato de Zezé Motta entre o teatro, o cinema e a música

Zezé se mudou para São Paulo e estreou no teatro profissional, com a peça de Chico, em 1968. No Rio, a protagonista era Marieta Severo. E, na capital paulista, era Marília Pêra — que se tornaria a grande conselheira e amiga de vida de Zezé. Numa das apresentações, a mãe de Marieta perguntou a ela o nome de sua colega de peça.
Foi só aí que as duas se deram conta de que eram as crianças que, 15 anos antes, haviam brincado no mesmo prédio do Leblon, em mundos sociais bem diferentes. As duas tomaram surras de cassetete do Comando de Caça aos Comunistas, que, em uma das noites, invadiu o teatro, e seguem amigas até hoje.
Durante os tempos de Roda Viva, com dificuldades para bancar um apartamento em São Paulo, Zezé quase retornou ao Rio. Foi Marília Pêra quem não a deixou desistir e a abrigou em sua casa. Valeu a pena a insistência. Em 1976, Zezé ganharia projeção internacional ao protagonizar, no cinema, a sensual Xica da Silva, uma mulher escravizada que enriquece no século 18. “Eu fui símbolo sexual. Acho isso muito engraçado. Não é engraçado ter sido símbolo sexual?”
Depois do sucesso, ela decidiu que viraria cantora — do nada. “As pessoas me perguntavam ‘e agora?’. Aí eu falei: agora eu vou cantar, já fiz sucesso, vou cantar um pouco. Meu empresário, o Guilherme Araújo, leu isso… não tinha nenhuma estrutura, gravadora, produtor, repertório, nada. Eu só estava com vontade, só tinha o sonho. E ele só disse ‘vambora’.”
Zezé lançou seu primeiro álbum solo em 1978 — três anos antes, ela havia gravado um disco com Gerson Conrad, ex-integrante dos Secos & Molhados —, chamado Prazer, Zezé. No ano seguinte, veio o álbum Negritude, com a música mais conhecida da artista: o clássico Senhora Liberdade, composta por Nei Lopes.
“Meu cachê aumentou muito depois de Xica da Silva e eu tinha muita proposta de trabalho. Mas o que explodiu muito, o que realmente me deu estabilidade, foi a música. Quase todo fim de semana cantava — e ainda canto — em algum lugar”, conta.
Zezé Motta e a luta contra o racismo na sociedade (e televisão)

Até porque, mesmo com todo o sucesso, Zezé ainda recebia convites para personagens vazias — sem falas, sem histórias, sem tramas. Numa dessas, se recusou a interpretar uma personagem em que a atuação se resumiria a: servir doces e salgadinhos em uma festa.
Zezé falou abertamente na imprensa sobre sua indignação. Ela jogou luz no racismo da TV — os papéis destinados a atores e atrizes negros quase sempre eram secundários, de faxineiras, motoristas, secretárias.
O posicionamento deu à Zezé um lugar de respeito dentro do movimento negro. E ela sentia que precisava se aprofundar mais no assunto. Leu no jornal sobre um curso de cultura negra, ministrado por Lélia González, e se inscreveu.
“Eu amadureci meu discurso. Lélia foi muito, muito importante na minha vida. Ficamos amigas, ela vinha nos famosos almoços de domingo na minha casa, que rolam até hoje.” Mais madura, a artista ajudou a fundar o Movimento Negro Unificado, em 1978. E criou, em 1984, um de seus maiores xodós: o Centro de Informação e Documentação do Artista Negro (CIDAN).
“Olhava para o set e cadê meus amigos negros? Aí passei a falar para atrizes negras: me dá uma foto sua, quero montar um catálogo. Aí meu marido na época [o antropólogo Jacques d’Adesky] me disse ‘Zezé, não é assim, olha a foto dessa pessoa, ela nem parece mais assim! Tem que ser uma coisa mais organizada’. Fizemos direitinho e conseguimos patrocínio.”
Até o ator Lázaro Ramos admite em entrevistas: conseguiu o primeiro teste de personagem dele graças ao CIDAN. “Eu fico toda prosa porque ele gosta de falar isso.”
No mesmo ano, Zezé protagonizou a personagem Sônia, par romântico do ator branco Marcos Paulo, na novela Corpo a Corpo. Se na ficção o casal sofria preconceitos da família dele, na vida real não foi diferente: a atriz recebeu comentários extremamente racistas, à época.
“Foi muito difícil, é difícil não ser afetado por isso. Mas nunca pensei em desistir. Aquilo era combustível para seguir minha luta. Eu já estava colhendo os frutos do meu trabalho e da luta de movimentos negros, sendo reconhecida, ganhando prêmios.”
A visão de Zezé Motta sobre sexualidade na maturidade e envelhecimento

Hoje, aos 81, Zezé diz que prefere deixar para as novas gerações os fronts de batalha contra o racismo — a parte dela foi cumprida com maestria: deixou um legado e abriu caminhos aos artistas negros mais novos. Mas tem uma coisa que ela não abre mão, independentemente da idade: sexo.
“Eu brinco que a minha relação com a sexualidade é tranquila porque no colégio interno fui muito reprimida. Perdi a virgindade aos 21. Depois virei símbolo sexual, posei nua para uma revista chamada Pomba. Eram fotos lindas, que não mostravam tudo, deixavam ali escondidinho, com o bumbum na lateral, nada frontal. Eram só fotos sexy.”
Faz questão de levar o tema sobre sexo na maturidade também para as telas. Em 2023, no curta Deixa, interpretou Carmen, uma sexagenária que vive o último dia de romance com um homem mais jovem, antes do retorno do marido, que cumpria pena no sistema prisional.
Em entrevistas, a diretora Mariana Jaspe contou que houve um cuidado especial para a cena de sexo protagonizada por Zezé. Desnecessário, a atriz não teve qualquer embaraço em tirar a roupa em cena — assim como em todas as fotos que propusemos para este ensaio em sua casa.
“Eu não sou travada. Até porque acho que atriz não pode ter pudor. Quer dizer, se tiver dificuldade, eu entendo, ninguém tem obrigação de tirar de letra. Mas acho que o ideal é que não tenha pudor, desde que seja um trabalho sério. E esse tinha uma discussão bem interessante. Quando a mulher é mais velha no relacionamento, causa uma polêmica”, conta. “E as pessoas continuam sentindo prazer. Isso é saudável. Deveria ser encarado com naturalidade.”
Naturalidade com a qual ela também encara a morte, depois de tantas perdas — a mãe, o pai e tantos amigos amados se foram ao longo dos anos. “A gente sofre muito na adolescência. Com a maturidade, ainda sofremos, mas vemos a morte com um pouco mais de naturalidade. Não penso muito sobre o que vão lembrar de mim quando eu morrer, mas sei que sou muito querida.” Querida é pouco, Zezé.
Créditos
- Foto Camila Tuon
- Styling José Camarano
- Beleza André Florindo
- Direção de arte kareen sayuri
- Produção de moda Daiane Gomes, Pedro Delmas, Victor Galaverna e Kisy Condé
- Assistente de fotografia Pamela Anastácio
- Retouch Marcos Okubo
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