Entre traumas e desejos: Vera Iaconelli expõe suas memórias em obra intimista

Vera Iaconelli, que está lançando Análise, seu quinto livro, se diz “acostumadíssima” a dar entrevistas. Conhecida por suas colaborações na imprensa, pelas participações em podcasts e vídeos e pelos textos contundentes, a psicanalista, com palavras sempre seguras e certeiras, oferece insights sobre temas como a criação de filhos, a valorização da maternidade, a ressignificação dos afetos, o processo de descobrir-se branca em uma sociedade racista e desigual.

Desta vez, no entanto, há algo diferente. Vera recebeu a equipe de CLAUDIA assim que se mudou para a casa nova — espaço que simboliza um novo momento de sua vida, no qual, segundo ela, a desconstrução das ilusões abriu espaço para o surgimento de desejos genuínos.

A metáfora, que ela comenta no livro e nesta conversa, tem dimensões concretas. Na nova residência, os espaços são abertos, a luz intensa banha os cômodos e os ambientes são baseados na solidez do concreto e da madeira. Tudo remete para a consistência de um projeto, de um pensamento, capaz de iluminar e franquear caminhos.

Além disso, esta foi uma das primeiras vezes que colocou a própria vida em pauta, comentando a relação com a mãe e os irmãos, a violência doméstica vivida na infância, a vida dupla do pai, a maternidade e o divórcio. “Não é a mesma coisa”, afirma, confessando a sensação de “atrapalhar-se toda” ao falar do livro, algo de que certamente você poderá discordar ao ler a entrevista.

“Mas está sendo muito importante tornar essa história pública, pois, para a psicanálise, uma forma de elaborar o trauma é dar-lhe sentido no laço social”, diz, contextualizando a necessidade íntima que a levou a abrir as portas de sua casa.

Psicanalista expõe reflexões sobre o desejo e a culpa feminina ao longo dos anosGabi Portilho/Divulgação

No novo livro, você está abrindo pela primeira vez questões pessoais. Considerando que o analista em geral é bastante discreto na sua intimidade, como tem sido essa passagem para você?

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O psicanalista sempre esteve no espaço público, e alguns, como [Christian] Dunker e eu, estamos sempre transitando, pois entendemos que a psicanálise ajuda a gente a pensar a cultura. E, nesse trânsito, você acaba contando um pouco da sua vida. Mas Análise é um passo além. Expor a minha experiência pessoal, a partir da minha própria análise, é diferente do que eu fazia nos meus artigos da Folha, nos livros anteriores, ou nos podcasts. Na clínica, tem um corte muito importante: o psicanalista não está lá como um cidadão entre outros, e sim em uma posição muito específica de escuta. Algumas pessoas chegam achando que vão bater um papo como se estivessem trocando uma ideia comigo em um podcast, mas logo percebem que não é assim. Tem gente que não volta.

Você menciona, no livro, o medo de ser tragada pela escrita. Esse medo surgiu só agora, com o ensaio autobiográfico?

Eu nunca havia tido essa experiência nos outros livros, que partiam de uma escrita mais acadêmica, traduzida para leigos. Eu não tinha essa sensação de ser tragada. Mas, quando a escrita parte mais da experiência pessoal, de memórias pessoais, de reflexões da análise, aí há o risco de ser tragado pelo inconsciente mesmo, que é a fonte de onde se produz. Eu não sei como é para outros autores, mas para mim foi uma experiência brutal.

Isso fica claro quando você diz escrever enquanto ouve a reforma na casa vizinha, que é a casa onde vive agora. Então, se o contraponto à escrita era a estaca batendo na parede, não poderia haver muita delicadeza.

Exatamente. A casa antiga foi inteiramente demolida, porque era muito sinistra, escura, toda fechada. Nós queríamos tudo aberto. E, quando demole, você não sabe qual estrutura ficará: se as paredes aguentam, se as colunas são fortes. Há essa sensação de pôr à prova a estrutura ao tirar coisas — como na análise, em que vamos vendo o que sobra. E, depois, o que fazemos com essa sobra? Não se pode viver em ruínas, em carne viva, para sempre. É preciso compor coisas, e essa composição se dá a partir do desejo. Com a construção da casa, eu vivi no real essa experiência, como uma metáfora.

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Vera Iaconelli posando em sua nova casa em entrevista para a CLAUDIA
Em sua nova casa, Vera materializa o desejo de reconstrução e liberdadeGabi Portilho/Divulgação

Você também comenta que a decisão de se mudar para a casa nova responde “a uma lógica que não se mostra fincada no bom senso”. O que isso diz sobre o papel do desejo na psicanálise?

Somos movidos por desejos que não fazem muito sentido, mas os desejos nos movem. São esses paradoxos que a psicanálise aponta: há ilusões que a gente tem que saber que são ilusões, mas das quais a gente não pode prescindir. É muito louco saber que a gente é baseada em falsas premissas necessárias — desde que saibamos que são falsas. O bebê tem que acreditar que papai e mamãe resolvem tudo. Não é verdade, mas ele precisa acreditar nisso. E daí segue uma série de ilusões para a gente continuar viva.

Entre várias passagens bonitas, há uma frase que diz: “Cada mulher que dá um passo em direção ao próprio desejo oferece uma chance para as demais”. Em que medida a relação que as mulheres mantêm com o desejo é um programa do seu trabalho?

A demanda das mulheres, por incrível que pareça, com tanta transformação que a gente tem vivido, continua a mesma: sentem culpa por não serem mães suficientemente presentes, por não estarem com os filhos o tempo todo, e também sentem que perdem algo por estarem com eles tanto tempo. Quando uma mulher consegue marcar seu desejo em primeiro lugar, e deixar um pouco de lado o marido, os filhos, as expectativas sociais, ela abre um espaço de imaginação. Um espaço para imaginar que é possível: é possível não ter filhos, é possível tê-los e abrir mão disso ou daquilo para cuidar deles ou abrir mão dos filhos para cuidar de outra coisa. Elas vão abrindo caminhos em que podem desejar, imaginar e realizar. Além disso, a gente marca os nossos filhos com essa escolha, embora a gente ache que devesse estar lá com eles o tempo todo.

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Sua família leu o livro?

Mandei para meus irmãos, deixando claro que se tratava de uma versão, a minha versão. É uma ficção baseada em fatos, com personagens reais. Foi engraçado: meu irmão fez algumas correções de datas e nomes. Eu estava apreensiva, mas a gente não deveria nunca ter vergonha da família que a gente tem. É a nossa origem. Somos quem somos também pelas coisas ruins daquela família. E não existe família feliz. É disso que eu falo todo dia, é com isso que eu trabalho diariamente. Cada um tem a sua família, com perrengues, coisas ruins. Às vezes há coisas terríveis, mas tem algo que te constituiu. São pessoas que às vezes tiveram coisas ainda muito piores do que aquilo que te ofereceram. Esse resgate, olhar para a geração anterior com dignidade, é algo que me interessa.

Vera Iaconelli posando em sua nova casa em entrevista para a CLAUDIA
A maternidade, o divórcio e a menopausa ganham voz em seu novo momentoGabi Portilho/Divulgação

O que você acha que trouxe à tona para seus irmãos com essa escrita?

Algumas coisas eram absolutamente óbvias, mas não nomeadas. E nomear é fundamental. Atendo pacientes que relatam violências domésticas como cenas banais: “Meu pai pegava o prato em que eu estava comendo e jogava na parede”. E eu pergunto: “Então você sofria violência doméstica?”. A nomeação do sofrimento dá reconhecimento social. Para mim, foi um grande alívio poder nomear algumas coisas importantes, como pai alcoólatra, violência doméstica, pai com duas famílias. Imagino que, para eles, poder ler isso com todas as letras também seja um alívio. São coisas que precisam ser ditas, se não, fica assim: “Ele é esquentado. Ele era tão genial que às vezes perdia a mão”. Não. Genialidade é uma coisa, violência é outra.

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Você relata no livro que, durante a menopausa, buscou ajuda psiquiátrica. Como foi esse processo?

A menopausa foi superchocante. Eu sou uma pessoa muito saudável, muito agitada, e eu me sentia como se estivesse doente. Eu não entendia. Por mais que você leia, estude, ouça outras pessoas, nunca sabe como será com você. Quando acontece, você não reconhece. Fiquei ressentida com as limitações do corpo, com o envelhecimento mesmo. E isso virou uma depressão. Consultei uma psiquiatra e psicanalista maravilhosa que, além de me ouvir, me medicou de um jeito muito bacana. Fizemos um projeto de alguns meses de uso da medicação para ver se eu passava por essa fase. Não foi um tratamento a fundo perdido. Agora estou na pós-menopausa. Aquela fase já acabou. Tem uma vida que já não se compara à anterior. Não tem mais: “Ah, o que eu perdi”. É daqui para frente. É muito mais gratificante. Eu achava que não ia ter depois.

Você comenta que sua família traz histórias de mulheres que sobreviveram aos homens, inventando uma nova vida para si. Acredita que esse padrão de mulheres que sobrevivem aos homens termina com você?

Vejo algo bonito na geração das minhas filhas, que têm 24 e 27 anos. Durante a adolescência, elas passaram por uma fase de “abaixo o amor”. Valorizavam mais os amigos, o prazer, a liberdade. Mas chegou uma hora em que quiseram uma relação mais longeva — e fizeram escolhas muito lindas, por caras muito legais. Tem uma geração de meninos legais chegando. Não são muitos, mas vejo que é outro nível de conversa. O amor é legal, mas vai junto. Vivem junto com os amigos, vão morar com os amigos, fazem planos de, na velhice, estar com os amigos. Eu acho isso muito precioso, esvaziar um pouco a idealização do amor romântico, dos casaizinhos. Acho que elas não vão precisar sobreviver aos homens. É claro que a violência está aí para elas também, gravíssima, o feminicídio e tudo mais — mas com esses homens anônimos, não com os homens que elas escolheram. Elas fazem escolhas mais legais.

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