“Não gosto de ser mãe”: o relato que rompe o silêncio sobre o arrependimento materno

Na última semana, a maternidade voltou ao centro dos debates públicos e das redes sociais. O motivo foi a nova pesquisa do IBGE, que revelou: a taxa de fecundidade no Brasil segue em queda e já está abaixo do nível necessário para a reposição populacional.

A divulgação reacendeu questões importantes sobre as escolhas que rondam a maternidade, especialmente em um contexto em que cresce o número de mulheres que decidem ter apenas um filho – ou não ter nenhum. Entre os relatos que ganham força nesse cenário está o de Karla Tenório, mãe, atriz e idealizadora do projeto Mãe Arrependida.

Karla compartilhou com CLAUDIA a experiência de reconhecer que não gosta de ser mãe e o processo de aprender a lidar com essa realidade sem uma culpa esmagadora – escolha que ecoa as transformações demográficas que o país enfrenta.

Quando a maternidade é uma imposição

Desde a Antiguidade, a maternidade foi imposta como destino natural e quase obrigatório às mulheres. A ideia tradicional é simples: se apaixonar, casar e constituir uma família com filhos. Para Karla não foi diferente. Por anos, ela se enxergou como uma mulher fora desse padrão. Durante a adolescência e boa parte da vida adulta, afirmava com segurança que não tinha o desejo de ser mãe.

No entanto, dois anos após o casamento, em meio a um retiro espiritual, Karla conta que viveu o que chamou de “visão” sobre uma futura gravidez. A partir dali, decidiu iniciar o processo para tentar engravidar – até a chegada de Flor Inaê.

O que surpreende é que a gravidez, longe de ser difícil, foi vivida de forma plena. “Trabalhei, fiz teatro de rua, participei de uma minissérie, nunca estive melhor”, relembra. Mas, ao contrário do que costuma ser idealizado, o parto foi traumático, tanto física quanto psicologicamente. E, junto com ele, veio o arrependimento imediato.

“A transformação instantânea é o mais violento, porque tudo muda de repente e você não tem a chance de dizer ‘espera, deixa eu elaborar isso aqui’. Não. Você está ali, com o corpo estranho, os hormônios desregulados e sem tempo – porque a expectativa social é que você seja uma mãe excelente desde o primeiro minuto”, desabafa.

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Culpa e silenciamento

Para a psicanalista Elisama Santos, esse sentimento é mais comum do que se admite, justamente por conta da construção social que cerca a maternidade. “A questão não é amar ou não o filho, mas o peso que esse papel carrega, porque a forma como a maternidade foi construída socialmente serve, muitas vezes, para aprisionar mulheres”, explica.

A psicóloga Raquel Baldo observa que, em seus atendimentos, é comum que a maioria das mulheres se deparem com a frustração na relação entre mãe e filho. “Elas só descobrem, ao se tornarem mães, a verdadeira realidade dessa condição – uma relação na qual muitas vezes precisam se abdicar de si mesmas para atender às demandas desse outro ser”, afirma.

Karla, ao aprofundar seus estudos, percebeu que a culpa materna não é apenas um sentimento individual, mas um dispositivo histórico e social. Segundo ela, os discursos presentes na filosofia, literatura, política e outras áreas sempre reforçaram esse papel opressor da maternidade.

Apenas quando a filha tinha nove anos, ela se sentiu segura para falar abertamente sobre o assunto. “A gente já tinha uma relação incrível e eu fui caminhando com ela nesse processo, explicando e incluindo, para que ela soubesse que a culpa não era dela. Mas é por meio dela que esse sofrimento se manifesta, porque a sociedade determina que eu deva criá-la de determinada forma”, conta.

O contato com outras mulheres que vivenciavam sentimentos semelhantes foi essencial para que a atriz criasse o projeto Mãe Arrependida, um espaço de escuta e acolhimento para mães que não se encaixam no ideal romantizado da maternidade.

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Muitas mulheres ainda não conseguem lidar com o sentimento, ou até mesmo falar sobreMama Bird Brasil/Divulgação

O peso do arrependimento e a ausência de volta

Questionada sobre os primeiros sintomas desse sentimento, Karla relembra a falta de forças para mudar sua situação e a sensação de culpa extrema. Do ponto de vista religioso, chegou a se considerar uma pecadora passível de punição. “Eu pensava: ‘ferrou, porque eu não vou morrer agora, e pelo jeito vou passar o resto da vida sentindo isso’. A sensação era de que minha vida tinha acabado, o trem tinha passado, eu estava sozinha na estação e não ia passar mais nenhum vagão”, relembra.

Raquel Baldo reforça que é natural que sentimentos de culpa surjam, já que a sociedade sustenta a ideia de um amor materno sagrado e incondicional – algo que deveria existir a qualquer custo, mesmo quando impõe danos, abdicações e sofrimento à mulher.

A profissional faz questão de destacar que esse arrependimento não está, de forma alguma, ligado à falta de amor pelo filho. “Quando uma mulher se declara arrependida, ela não está atacando a relação com a criança, tão pouco querendo destruir isso. Quando trazem esse sentimento, estão falando da sobrecarga que a maternidade impõe sobre elas. E isso é fundamental da gente separar”, pontua.

Elisama Santos complementa que o arrependimento materno pode acontecer como em qualquer outra relação – seja um casamento frustrado ou uma escolha profissional mal-sucedida. A grande diferença, no entanto, é que a maternidade é para sempre, e não há como desfazer esse vínculo. Por isso, é fundamental trabalhar o emocional, a culpa e as expectativas para construir a relação mais saudável possível, tanto para a mãe quanto para o filho.

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Dar nome a quem vive esse sentimento

Hoje, são cada vez mais as mulheres que têm coragem de falar abertamente sobre o assunto e de mostrar seus rostos para afirmar: Eu sou uma mãe arrependida. Karla conta que se emociona ao ver esse movimento ganhar força, já que por muito tempo o tema foi um tabu absoluto.

Ela lembra que só após uma publicação nas redes sociais que abordava a maternidade real, o debate começou a se tornar público. Karla também reconhece a importância do trabalho da socióloga israelense Orna Donath, autora de Mães Arrependidas (2015), obra que abriu espaço para que ela e outras mulheres pudessem dar rosto e voz a esse sentimento antes invisibilizado. “Faz parte do ser humano amar e odiar qualquer coisa. Mas com a maternidade isso nunca foi aceito”, reflete.

Raquel Baldo finaliza reforçando que, quando uma mulher se declara arrependida da maternidade, a atitude mais urgente e necessária é o acolhimento. “Do ponto de vista psíquico, esse arrependimento é, na verdade, um grito de socorro para que ela siga viva, porque a maternidade veio e desmontou toda a estrutura daquela existência anterior”, explica.

Para a psicóloga, é fundamental iniciar um processo de resgate psicológico, para que essa mãe possa se reencontrar consigo mesma e lembrar que, antes de qualquer papel social, ela é, e continuará sendo, uma mulher.

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