Muitos detalhes da vida pessoal de William Shakespeare são um mistério e pura especulação, e, nesse contexto, não há suspense maior do que a dúvida de quem foi sua esposa, Agnes Hathaway. Ignorada na maior parte das biografias do dramaturgo por séculos, ela e seus filhos ficaram à sombra da inigualável obra de Shakespeare, mas isso pode mudar ainda em 2025.
Os rumores de que Hamnet já seja apontado como um dos favoritos ao Oscar 2026 despertam também uma curiosidade histórica. Afinal, o filme gira em torno da família de Shakespeare e a protagonista é justamente Agnes, mais frequentemente citada como “Anne Hathaway”. Isso mesmo, homônima da atriz de Hollywood (ou o inverso).
Como em documentos da época ela aparece registrada como “Agnes Hathaway”, o nome “Anne”, consagrado pela tradição, tem sido preterido pela forma correta, que é “Agnes”, um detalhe aparentemente banal, mas que ganhou força nos últimos anos, quando estudiosos e escritoras como Maggie O’Farrell, autora do livro Hamnet, buscaram resgatar a figura dessa mulher quase apagada da história. No filme, portanto, ela é Agnes.
Casamento de faxada?
Nascida em 1556, em Shottery, a poucos quilômetros de Stratford-upon-Avon, Agnes era filha de uma família de fazendeiros respeitáveis. O destino dela se entrelaçou ao de um jovem William Shakespeare quando ele tinha apenas 18 anos, e ela, 26. O casamento aconteceu em 1582 de forma apressada — Agnes já estava grávida, e uma licença especial foi concedida pela Igreja para que o matrimônio fosse realizado sem esperar a maioridade do noivo. Pouco depois, nasceu Susanna, a primeira filha. Em 1585, vieram os gêmeos Hamnet e Judith.
A vida familiar, entretanto, logo sofreu com ausências. Enquanto Agnes cuidava da casa e dos filhos em Stratford, Shakespeare partiu para Londres e construiu a carreira que o transformaria no maior nome da literatura inglesa. Esse distanciamento físico e emocional alimentou séculos de especulações: foi um casamento de conveniência? Havia amor? Nos sonetos e nas peças, há ecos da esposa?
A resposta definitiva nunca virá, mas o fato é que Agnes sobreviveu sem o marido por sete anos, falecendo em 1623, aos 67, e sendo enterrada ao lado dele na Igreja da Santíssima Trindade.
Os retratos de uma personagem apagada
A única menção direta que temos do dramaturgo à esposa está em seu testamento, no qual Shakespeare lhe deixou a “segunda melhor cama”. Para uns, um gesto de frieza; para outros, de intimidade — afinal, a “melhor cama” era a cerimonial, e a “segunda” era a usada pelo casal. Esse detalhe se tornou símbolo do enigma que envolve a relação.
Outro dado curioso sobre essa invisibilidade é que não existe registro visual autenticado de Anne (ou Agnes) Hathaway. Os retratos que circulam hoje são interpretações hipotéticas, feitas séculos depois por artistas ou antiquários, e muitas vezes usadas por editoras e museus apenas como representação simbólica. Até nesse aspecto, ela permaneceu “apagada”, sem rosto oficial na história, diferente do marido, cujos retratos canônicos atravessaram os séculos.
Os versos e a intimidade possível
Alguns estudiosos acreditam que Shakespeare tenha deixado rastros de Agnes em sua poesia. O único caso mais direto é o Soneto 145, em que o jogo de palavras “hate away” ecoa o sobrenome Hathaway, sugerindo um tributo juvenil à futura esposa.
Já o Soneto 18 — “Shall I compare thee to a summer’s day?” — e o Soneto 116 — “Let me not to the marriage of true minds admit impediments” — são tradicionalmente lidos como reflexões universais sobre o amor, mas também já foram associados a experiências íntimas do poeta. Não por acaso, ambos aparecem recitados no filme Shakespeare in Love (1998), embora ali sejam ligados à figura inventada de Viola, e não à esposa real.
Essa distância é significativa: o mesmo filme que romantizou a vida íntima do autor também reforçou a hipótese da “dark lady”, uma suposta amante, que muitos críticos acreditam ter inspirado os sonetos mais carnais e ambíguos. Agnes, nesse contexto, continuou relegada à sombra.
E quando se trata de seu filho Hamnet, morto aos 11 anos, a ausência é ainda mais eloquente. Shakespeare não escreveu um poema registrado em sua memória, mas críticos veem ressonâncias profundas em suas peças. O próprio nome Hamlet é considerado eco direto de Hamnet. E em Rei João, o lamento de Lady Constance pela perda do filho Arthur é tão visceral que muitos acreditam ser a dor de Shakespeare transposta para o palco:
“A dor enche o quarto do meu filho ausente. Deita-se em sua cama, anda de um lado a outro comigo. Assume seus traços delicados, repete suas palavras…”
É uma das passagens mais pungentes do teatro elisabetano, capaz de transformar a dor privada em arte coletiva.
Um legado de silêncio e redescoberta
Por muito tempo, Agnes foi reduzida a “a esposa de Shakespeare”. Mas pesquisas recentes e obras de ficção tentam devolver-lhe voz e protagonismo. A ensaísta Germaine Greer, no livro Shakespeare’s Wife, argumenta que ela foi figura central para a estabilidade do dramaturgo, cuidando da família e da herança em Stratford.
Maggie O’Farrell, em Hamnet, reimagina essa mulher em carne e osso, mãe que sofre a perda devastadora do filho, e a adapta para a tela numa narrativa profundamente humana.
No cinema, ela raramente apareceu. Em Shakespeare in Love, foi ignorada em nome de uma ficção romântica. Mas em All is True (2018), Kenneth Branagh coloca a personagem (interpretada por Judi Dench) no centro de um retrato íntimo do dramaturgo envelhecido, confrontando-o sobre ausências, segredos e ressentimentos. Agora, em Hamnet, Agnes ressurge protagonista, com o nome pelo qual talvez tenha sido de fato chamada.
Assim, nesse inesperado cruzamento entre passado e presente, Agnes Hathaway surge diante de nós não apenas como a esposa de um gênio, mas como uma mulher real, que atravessou a vida marcada por maternidade, luto e silêncio histórico. Se Hamnet conquistar o Oscar, será também um reconhecimento indireto dessa figura que, até pouco tempo atrás, permanecia à margem — e que agora, finalmente, começa a ser vista com outros olhos. Já era hora.
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