Mariangela Hungria: pesquisa da cientista brasileira reduz US$ 25  bilhões no agro

Como brincam as meninas que querem ser cientistas? Elas têm muitas perguntas? Andam por aí elaborando peraltices em nome do conhecimento?

A engenheira agrônoma Mariangela Hungria, 67, soube desde a primeira infância que essa era a sua vocação e nunca se aguentou quieta. Foi essa certeza que a conduziu até o World Food Prize, considerado o Nobel da Agricultura, prêmio com o qual foi laureada este ano.

Quem a conduziu até esse caminho foi sua avó Edina, que Mariangela chama de “avó mágica”. “Sempre fui muito curiosa, queria saber de tudo. Minha avó era professora de ciências e percebeu isso.

Ela tinha paciência, me explicava as coisas, pegava seus livros para lermos juntas e, quando chegava da aula, ainda tinha disposição para fazer experiências comigo, usando as plantas do quintal”, lembra a engenheira agrônoma, que trabalha como pesquisadora na Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e professora na UEL (Universidade Estadual de Londrina); e  venceu o Prêmio CLAUDIA 2015, na categoria Ciência.

Aos 8 anos, Mariangela ganhou da avó o livro Caçadores de Micróbios, que conta a história dos pioneiros da microbiologia. “No dia seguinte, falei para ela: ‘Vó, quero ser microbiologista’”, afirma Mariangela.

O livro seguinte foi a biografia de Marie Curie, única mulher e primeira pessoa a receber dois prêmios Nobel, em áreas distintas: física e química. “Acho que ela percebeu que eu ainda tinha inseguranças. Aí falei assim: ‘Nossa, vó, então pode ser cientista mulher? Ah, então eu quero ser uma cientista e estudar microbiologia’”, conta, rindo. 

E os modos de menina?

A paixão de Mariangela pela ciência não foi muito compreendida naquela época — principalmente no colégio de freiras onde estudou até os 10 anos em Itapetininga, no interior de São Paulo, na década de 1960. “Na escola, eu tirava 100 em tudo porque sempre fui muito estudiosa, mas minha grande frustração é que eu nunca consegui passar de 80 no comportamento, e isso me magoava.

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Eu realmente era muito inquieta e fazia muitas perguntas. Elas [as freiras] falavam: ‘Isso não são modos de menina’. Perguntar, querer saber das coisas e contestar, sabe?”, conta a engenheira. 

Mais tarde, quando a família se mudou para a capital paulista e ela conseguiu uma bolsa no Colégio Rio Branco — escola de elite conhecida também por formar grandes nomes — ser excelente aluna, benquista pelos professores e uma promessa de sucesso também não bastou para que Mariangela pudesse escolher a engenharia agronômica sem receber críticas.

“Os professores ficaram horrorizados, porque era uma coisa muito desconsiderada mesmo e quem ia fazer agronomia era filho de fazendeiro. Eles até chamaram minha mãe para conversar, para dizer que eu tinha de ir para a medicina”, lembra. 

Desta vez, a mãe apoiou as convicções da filha e Mariangela foi estudar na USP (Universidade de São Paulo). “Eu ficava muito triste e chocada quando via uma pessoa passando fome. Então era natural que eu fosse para a agronomia”, afirma. 

Mãe ou cientista? 

Como se não bastasse ser uma mulher se pondo à frente em um curso majoritariamente masculino, Mariangela engravidou no segundo ano de faculdade; no seguinte, adotou a segunda filha, diagnosticada com deficiência intelectual leve — para muitos, todo esse cenário poderia ser um entrave, mas para ela foi o impulso que faltava.

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“A maternidade dá foco. Antes, quando não tinha minhas filhas, eu viajava na maionese. Fazia um negócio aqui, parava para um cafezinho, não sei o quê… E para ter uma carreira, você precisa de foco”, afirma. 

Não foi fácil, é claro. Para criá-las como mãe solo, Mariangela se desdobrou enquanto era universitária: fez tradução, serviço de datilografia e trabalhou em uma biblioteca catalogando livros científicos até conseguir uma bolsa de mestrado para continuar a pesquisa em Solos e Nutrição de Plantas.

Nos braços, ela tem tatuadas suas duas grandes paixões: o nome das filhas Carol e Marcela, e o símbolo químico N2, que representa a fixação biológica do nitrogênio, a grande estrela das suas pesquisas. 

“Eu nunca seria uma cientista feliz se eu não tivesse sido mãe. E eu nunca seria uma mãe feliz se eu tivesse que abdicar da minha carreira”, afirma. “Hoje seria impossível, porque o valor de uma bolsa de mestrado a nível nacional é R$ 2.400, com esse valor uma mulher não consegue ter duas crianças e fazer pesquisa. Faltam políticas públicas que permitam uma mulher ser cientista e ser mãe.”

Em 1982, Mariangela recebeu o convite para cursar o doutorado em agronomia na UFRRJ de sua maior inspiração profissional: Johanna Döbereiner, cientista tcheca naturalizada brasileira, indicada ao Prêmio Nobel de Química em 1997.

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Cair nas graças da cientista era o desejo de Mariangela, mas ela nem precisou de tanto esforço. Com oito meses na universidade, em 1982, ela foi convidada pela orientadora para trabalhar na Embrapa, em Londrina, no Paraná, seu único emprego até hoje e o lugar onde construiu sua carreira. 

“O lance era: eu tinha duas filhas, uma PCD, e não tinha nenhum parente morando a menos de 500 km de distância. Mas a doutora Johanna não viu essas limitações. Ela viu o amor, a dedicação que eu tinha e ela me deu essa oportunidade. Tenho certeza que se fosse um homem ali, ele não me daria o emprego”, afirma Mariangela.

Seu currículo Lattes é de dar inveja: nos Estados Unidos, fez pós-doutorado na Cornell University e na University of California e, depois, na Universidade de Sevilla, na Espanha. Também já orientou mais de 200 doutorados ao longo da carreira.

Um laboratório todo seu 

Quando chegou à Embrapa em 1982, Mariangela descobriu que seria ela a responsável por inaugurar o laboratório para o qual foi alocada. “Foi desesperador, porque eu não tinha absolutamente nada. Mas, por outro lado, foi a oportunidade de criar o meu laboratório, meu grupo de pesquisa e poder fazer aquilo que eu acreditava de verdade sem ter que pedir permissão para ninguém”, afirma. 

Apesar do susto, esse foi o momento que definiu o rumo da pesquisa responsável por transformar a agricultura brasileira: o desenvolvimento de bactérias capazes de substituir parcial ou totalmente os fertilizantes químicos, especialmente no cultivo da soja, por meio da fixação biológica de nitrogênio. Sua abordagem inovadora com os insumos biológicos permitiu o aumento da produtividade ao mesmo tempo que reduziu os impactos ambientais. 

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“Não estava pensando apenas no pequeno agricultor, eu queria atingir todos. Então, passei a dedicar a minha vida e o meu laboratório a isso. Para ter uma ideia do impacto, só na última safra, considerando área e rendimento, economizamos US$ 25 bilhões ao evitar o uso de adubo químico nitrogenado”, revela. Mas não só isso: Além da economia financeira, o Brasil também deixou de emitir quase 250 milhões de toneladas de CO2. 

“A Embrapa investiu em mim quatro décadas, desde o início da minha pesquisa, quando ninguém acreditava. Veja a importância de uma instituição pública, toda essa economia só foi possível graças à pesquisa. Hoje, somos os maiores produtores e exportadores de soja do mundo. Se não fosse por essas bactérias, acredito que nem conseguiríamos produzir, pois o custo seria absurdo”, afirma. 

Até aqui, não é difícil de entender o que levou Mariangela ao World Food Prize. Mas, mesmo diante das evidentes transformações que sua inquietação provocou no mundo, ela diz que nunca imaginou que poderia ser premiada por isso — tanto que não entendeu quando recebeu o contato da instituição.

“Recebi um e-mail e entendi que eles estavam me convidando para uma palestra. Fiquei tão feliz, meio histérica, que quando entrei na reunião comecei a falar sem parar e a agradecer. Só depois eles explicaram que, na verdade, eu havia sido escolhida para receber o prêmio. Comecei a chorar”, lembra. 

Às mulheres, ela dedica o reconhecimento: “Elas têm um papel fundamental na segurança alimentar, mas isso é invisível para a sociedade e não tem uma valorização. As mulheres são as principais responsáveis pelas hortas domésticas e comunitárias; elas guardam as melhores sementes para futuras plantações.

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Também são elas que cultivam as plantas medicinais e transmitem de geração em geração o conhecimento sobre o preparo desses alimentos.” Pelo jeito, é na força coletiva feminina — e em mentes geniais como a de Mariangela — que podemos encontrar respostas para os problemas mais urgentes.

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