Não te causa estranheza que cerca de 10% da população brasileira faça parte da comunidade LGBTQIAPN+, mas não se saiba ao certo quantos idosos se identificam dentro desse grupo? Mais grave ainda é perceber que os poucos dados disponíveis sequer incluem pessoas trans e travestis. Estariam essas histórias realmente escondidas ou é a sociedade que insiste em fechar os olhos para elas?
Essa foi a provocação trazida pelo tema da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo em 2025. Com o lema “Envelhecer LGBT+: Memória, Resistência e Futuro”, o evento trouxe à tona a invisibilidade dessa parcela da população e, sobretudo, as dificuldades que ela enfrenta no dia a dia.
Para compreender melhor essas vivências, nada mais justo do que ouvir quem as experimenta na própria pele. A equipe de CLAUDIA conversou com quatro integrantes da ONG EternamenteSou, que compartilharam suas histórias como pessoas LGBTQIAPN+ 60+. A psicanalista Leninha Wagner também nos ajudou a analisar os desafios sociais e subjetivos que atravessam essas trajetórias.
Dora Cudgnola
Espirituosa e firme em suas convicções, Dora – atual presidente da ONG – inicia a conversa falando sobre amor. Viúva há 11 anos, a mulher de 72 anos conta que só se assumiu completamente ao ver sua companheira, Silvia, no caixão. Desde os 29 anos, após o divórcio do pai de sua filha, já se relacionava com mulheres, mas o medo da violência, que considerava seu maior desafio na época, foi o que a manteve discreta sobre sua sexualidade.
“Eu não falava quem eu era, tinha receio de perder amigos. Na época, nem usava muito a palavra lésbica, a gente dizia ‘entendida’ ou ‘sapatão’. Me anulava, dizia: ‘ela é minha amiga’, quando na verdade era minha companheira”, lembra.
Leninha explica que esse silêncio não foi individual, mas coletivo: “Estamos falando de uma geração que aprendeu, muitas vezes à força, que nomear-se tinha custo alto – perder família, emprego, amigos, dignidade e, em muitos casos, até a própria segurança física. O silêncio foi um recurso de sobrevivência. Mas quando a vida inteira é moldada pelo silêncio, ele não se desfaz facilmente.”
Nem sempre as experiências foram fáceis. Dora viveu relações abusivas e chegou a passar três anos em um relacionamento marcado pela violência doméstica. “Eu estava apaixonada e não conseguia enxergar. Demorei para sair.” Mais tarde, encontrou parceiras que a ajudaram a se reconstruir, a se ver no espelho com mais valor e autoestima. “Foi nesse processo que comecei a me entender de fato e a assumir quem eu era.”
O encontro com a EternamenteSou, em 2019, representou outro ponto de virada em sua trajetória. “Ali eu fui sentindo o meu crescimento, porque eu tava conversando com os meus pares: mulheres lésbicas, gays, trans. Eu vi a importância de sentir o envelhecimento”, conta.
Hoje, Dora fala com firmeza sobre os desafios da velhice lésbica. O primeiro, diz ela, é o tabu em torno do desejo. “Eu digo sempre: tenho tesão, sim. Não tenho um relacionamento porque não quero, mas não deixo de sentir vontade. O idoso, seja homem ou mulher, tem direito ao prazer, ao desejo e à vida.” O segundo, a forma como são vistos pela sociedade. “Muitos ainda nos tratam como coitadinhos. Mas eu danço, desfilo em escola de samba. Continuo vivendo com alegria.”
Leninha acrescenta que esse tabu tem efeitos psíquicos profundos: “Nossa sociedade associa a experiência LGBT à juventude, ao vigor, à liberdade do corpo jovem. Envelhecer, nesse imaginário, pode parecer uma espécie de ‘apagamento social’. Essa distância entre o ideal e a realidade gera angústia, vergonha e retraimento.”
Roseclair Berbel

A caçula de sete irmãos e vice-presidente da associação, seguiu um caminho diferente. Ela se descobriu lésbica aos 17 anos, quando se apaixonou por sua melhor amiga. Mas, ao contrário de hoje, falar sobre isso era praticamente impossível.
“Há 50 anos, ninguém falava sobre o assunto. Depois descobri que quatro amigas nossas eram, na verdade, dois casais. Mas ninguém falava nada por medo”, relembra.
Durante muito tempo, Rose acreditou que havia algo de errado consigo. Foi apenas ao frequentar bares de mulheres lésbicas que compreendeu que não estava doente, e que não estava sozinha.
O medo da rejeição e da violência, no entanto, sempre esteve presente. “O preconceito era enorme. Minha família nunca soube – até hoje não me abri com eles. E na época do Ferro’s Bar, era muito perigoso andar de mãos dadas com outra mulher. A gente podia apanhar na rua”, conta.
Sua vida afetiva teve momentos importantes. O primeiro relacionamento sério durou 12 anos, seguido de outras relações mais curtas. Hoje, solteira, sente a dificuldade de encontrar companheiras na mesma faixa etária. “As mulheres da minha idade parecem sumidas. Não sei onde estão. Sinto falta de ter alguém”, reflete.
Rose também denuncia o preconceito etário, inclusive dentro da própria comunidade. “Muitas vezes, quando saio para dançar, escuto: ‘olha a tiazinha dançando melhor que a gente’. Ou ainda: ‘vai lá paquerar a vovó’. Isso dói, porque mostra que ainda temos barreiras entre nós mesmos.”
Por isso, acredita que espaços como a EternamenteSou são fundamentais. “Aqui a gente debate o envelhecimento LGBT, faz atividades, troca experiências. Mas muitas mulheres não participam. Não sei se por medo, vergonha ou falta de interesse. Elas preferem bares, shows… Aqui é mais do que lazer, é uma causa: lutar contra a invisibilidade e pela dignidade no envelhecimento”, aponta.
Na última Parada do Orgulho LGBT+, que trouxe como tema o envelhecimento, Rose se emocionou, mas também notou ausências. “Vi muitos homens mais velhos, mas poucas mulheres. Onde elas estão? É como se não existissem. Precisamos estar presentes também nesses espaços”, afirma.
Ao olhar para trás, Rose reconhece a importância da luta que vem de gerações e reforça a necessidade de continuidade. “Para quem está se descobrindo agora, digo: continuem. Nós começamos lá atrás, agora é com vocês dar sequência para que a comunidade seja cada vez mais respeitada. E para as pessoas mais velhas, meu recado é: cuidem-se, apareçam, não se escondam. Venham lutar junto com a gente, porque só assim seremos vistos e ouvidos”, conclui.
Luis Baron

Luis é um estudioso no tema. Aos 65 anos, o paulista vem se dedicando a essa luta por mais de oito anos, no entanto sempre manteve a pauta em sua vida, tornando-se uma das vozes mais ativas sobre envelhecimento LGBTQIAPN+.
Diferente da maioria das pessoas, ele não teve um momento de descoberta. “Eu me considero atípico”, ri. Quando adolescente, gostava de se relacionar com ambos os sexos: “Para mim, tudo era natural. O problema nunca foi meu, mas da forma como os outros olhavam para isso”, relembra.
A revelação para a família veio aos 17 anos, quando sua mãe descobriu que ele estava se envolvendo com um menino. “Ela ficou preocupada, mas eu disse: ‘Mãe, quem tem problema é você, não eu’. Nunca tive conflito interno com a minha sexualidade. O que me move até hoje é entender por que isso incomoda tanto os outros”, conta.
Apesar de não ter enfrentado rejeição familiar ou perda de emprego, Luís viveu os anos de chumbo da ditadura, quando apenas estar em determinados espaços já era motivo para prisão. “Nos anos 70 e 80, eu morava com outro homem, todos sabiam que ele era meu marido. Mas havia a chamada ‘polícia de costumes’. Você podia ser preso só por ser homossexual”, afirma. No entanto, apesar de declarar não carregar feridas existenciais, ele sabe que grande parte de sua geração sofreu muito – na ditadura e na epidemia de AIDS.
Para ele, os tempos mudaram, mas os desafios continuam. Um deles é a força do idadismo, tanto na sociedade em geral quanto dentro da própria comunidade. “O preconceito contra a velhice é o mais universal de todos. No Ocidente, o velho é visto como descartável”, destaca.
Além disso, aponta que entre homens gays, a juventude é uma moeda de troca: estética, corpo e beleza. “Quando a velhice chega, muitos sentem que perderam espaço. Mas eu vejo diferente: surgem outras formas de atração, pelo diálogo, pela experiência. Só que as pessoas têm pavor da velhice, não querem olhar para esse espelho.”
Nesse cenário, ele celebra a escolha do envelhecimento como tema da Parada LGBT de São Paulo em 2025. “Foi extremamente importante. Em 2050, teremos 60 milhões de pessoas com mais de 60 anos no Brasil. Se não discutirmos envelhecimento agora, teremos uma legião de velhos infelizes.” Mas um ponto crucial apontado por Luís é que depois do evento, o tema costuma cair no esquecimento. É aí que entram organizações como a EternamenteSou: “Nossa função é manter esse debate vivo e oferecer acolhimento real”, aponta.
Esse acolhimento, explica Luís, é urgente diante da solidão que marca a velhice LGBT. “Na vida de qualquer idoso, existe a solidão existencial: perder pares, companheiros de geração. Mas na nossa comunidade existe também a solidão social: muitos foram expulsos de casa cedo, perderam a rede familiar e envelhecem sem apoio”.
Soropositivo há 38 anos, o autor do livro O Brilho das Velhices LGBT+ também carrega em sua trajetória a marca da epidemia de HIV. Na época, por volta dos anos 90, quando recebeu o diagnóstico, não havia medicação. “Perdi meu companheiro e muitos amigos. Achei que morreria em dois ou três anos. Depois vieram os antirretrovirais, e a vida seguiu”, relata. Com a redução das mortes causadas pelo vírus, Luís afirma: “Hoje digo sem problema: ser velho é mais difícil do que ser soropositivo. A epidemia reduziu muito a velhice da população LGBT, porque muitos não chegaram até aqui.”
Ele deixa um recado direto para todas as gerações: “A velhice não é doença. Envelhecer faz parte da vida, assim como a finitude. À comunidade LGBT eu digo: cuidem-se com carinho. Não precisamos viver de acordo com o padrão da juventude eterna. Cuide do corpo dentro das suas possibilidades, mas, acima de tudo, viva de forma feliz e possível. A velhice pode – e deve – ser gostosa.”
Jacqueline Chanel

Jacqueline Chanel, conhecida carinhosamente apenas como Chanel, nasceu em Belém do Pará e hoje, aos 61 anos, vive em São Paulo, cidade que adotou como lar desde os 25. Cabeleireira e militante, ela construiu sua trajetória unindo duas forças que sempre atravessaram sua vida: fé e luta social. “O que faço hoje é uma forma de unir essas duas forças: acolhimento espiritual e ativismo social”, resume.
Chanel é responsável pelo Projeto Céfuras, uma iniciativa para acolher pessoas LGBT+ que foram excluídas de comunidades religiosas tradicionais. Além da espiritualidade, o coletivo promove cidadania: organiza o Jantar Trans, que há 15 anos reúne pessoas trans em situação de vulnerabilidade para uma refeição digna; distribui marmitas, visita abrigos e desenvolve atividades culturais e de saúde. “É um espaço de fé, mas também de luta e de afeto”, define.
Sua história, no entanto, é marcada pelo preconceito desde cedo. Expulsa de casa aos 13 anos, Chanel precisou amadurecer rapidamente. Estudou Administração, mas não conseguiu concluir a faculdade por falta de condições financeiras e pela discriminação que já enfrentava no mercado de trabalho.
Ao chegar a São Paulo, passou em um concurso da antiga Telesp, mas foi impedida de avançar na carreira. “Um chefe chegou a dizer, na minha cara, que não teria os mesmos direitos porque eu era travesti. Foi a prova de como a competência nunca foi suficiente diante do preconceito”, lembra.
A descoberta de sua identidade como mulher trans aconteceu de forma transformadora. Aos 28 anos, ao participar de um concurso de beleza, viu sua alma refletida no espelho. “Naquele instante, não vi maquiagem nem cabelo. Eu vi a mulher que eu era. Foi um dos momentos mais lindos da minha vida.” A vitória no Miss Pará Gay de 1986 e, depois, no Miss Brasil Gay, foram não apenas títulos, mas confirmações de identidade e pontos de partida para sua atuação social.
Hoje, Chanel enfrenta os desafios do envelhecimento somados à transfobia. O etarismo pesa: já não consegue trabalho como cabeleireira e muitas vezes só é chamada para serviços de limpeza, até que descobrem sua identidade. “Dentro das empresas, insistem em usar meu nome de registro. Isso me fere profundamente. A sociedade descarta pessoas idosas, e quando se é trans, esse muro é ainda maior”, afirma.
Leninha reforça a dimensão desse problema: “Pessoas trans, especialmente, carregam o peso da retificação documental tardia. Isso pode limitar acesso a serviços básicos e reforçar a exclusão em espaços de cuidado. É uma ferida social que atravessa o envelhecimento.”
A emoção de subir ao trio elétrico da Parada do Orgulho LGBT+ deste ano, representando a pauta do envelhecimento, foi um marco na trajetória de Chanel. “Foi como ver Deus escrevendo a minha história. Ver o envelhecimento ser pauta numa Parada é como ver um ciclo se fechar – com reconhecimento e visibilidade.”
Sua mensagem é clara e direta. Para a sociedade: “Não precisamos que nos aceitem, precisamos que nos respeitem.” Para os jovens: “Se assumam, estudem, se empoderem. Não deixem que a vida se resuma à dor. Vocês têm direito à plenitude.” E para os mais velhos: “Não desistam. O envelhecimento pode ser solitário, mas quando estamos juntos ele se torna coletivo. Participem, apoiem uns aos outros. Nossa presença é uma forma de resistência”, conclui.
O que fazer diante desse cenário?
Leninha Wagner afirma que as medidas para avançar no combate as questões restratadas precisam ser múltiplas:
- Na política pública, incluir orientação sexual e identidade de gênero nos censos e serviços.
- Na saúde, garantir protocolos inclusivos: nome social, direito a quartos compartilhados com parceiros, banheiros adequados, capacitação de profissionais.
- No campo jurídico, reconhecer famílias escolhidas e facilitar retificação documental.
- Na cultura, ressignificar a imagem da velhice LGBT, mostrando histórias reais e promovendo projetos intergeracionais.
“Mitigar o preconceito é devolver visibilidade, dignidade e pertencimento. É garantir que esses idosos não precisem mais escolher entre existir e se proteger”, finaliza.
Assine a newsletter de CLAUDIA
Receba seleções especiais de receitas, além das melhores dicas de amor & sexo. E o melhor: sem pagar nada. Inscreva-se abaixo para receber as nossas newsletters:
Acompanhe o nosso WhatsApp
Quer receber as últimas notícias, receitas e matérias incríveis de CLAUDIA direto no seu celular? É só se inscrever aqui, no nosso canal no WhatsApp.
Acesse as notícias através de nosso app
Com o aplicativo de CLAUDIA, disponível para iOS e Android, você confere as edições impressas na íntegra, e ainda ganha acesso ilimitado ao conteúdo dos apps de todos os títulos Abril, como Veja e Superinteressante.