Ehuana Yanomami: a voz que o Brasil precisa escutar agora

No imaginário de muitas pessoas no Brasil, a palavra Yanomami é referência apenas em contextos de violência, racismo, fome, desnutrição, genocídio. De fato, é fundamental que isso seja cada vez mais denunciado, mas nós não somos apenas o que fizeram conosco. Foi sobre essa expansão que se deu o meu encontro com a parenta Ehuana Yanomami, que é liderança, artista, pesquisadora, ativista e mais um tanto. 

Este texto também é para que se lembrem da gente sorrindo.

O povo Guarani, do qual faço parte, há séculos teve seus primeiros contatos com não indígenas. Já para o povo Yanomami, cujo território se distribui nos estados de Roraima e Amazonas, esse contato foi bem mais recente, iniciado há poucas décadas.

Embora cada etnia tenha sua própria forma de viver — com territórios, línguas e costumes específicos —, há muitas conexões e é também por isso que, entre nós, nos chamamos de parentes, mesmo quando não há vínculo genético.

“Se vocês verem a forma como nós, Yanomami, pensamos, irão nos ajudar. Eu penso sobre isso quando faço minha arte”

Logo antes de nossa conversa, Ehuana havia visitado a aldeia Guarani Mbya Kalipety, em São Paulo, e me contou que a experiência de partilha tinha sido muito especial, que por meio dos cantos, da comida típica e do modo de vida, pode perceber que nós, guarani, somos como os yanomami.

Foi com esse carinho que a encontrei, com a alegria de quem celebra um reencontro. A conversa, conduzida em yanomam e português, foi regada de abraços e sorrisos. Só foi possível dessa maneira fluida porque tivemos a mediação e tradução sensível e generosa de Ana Maria Machado, antropóloga, pesquisadora e amiga de Ehuana.

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Dentre os temas discutidos na atualidade, a emergência climática, o individualismo e a coletividade se destacam. Embora esses assuntos sejam abordados por perspectivas variadas, as narrativas de mulheres indígenas ainda são menos escutadas.

Acompanhar e aprender com o trabalho de Ehuana Yanomami, é mais que um exercício de ampliar as referências, é uma inspiração. Seu trabalho é único em sua singularidade, mas coletivo no compromisso político com povos indígenas, com a vida de mulheres e crianças, com a biodiversidade do planeta.

Apresento aqui a nossa troca dividida por temas, e trago trechos inteiros da fala de Ehuana, para que possamos ouvir sua poderosa voz. 

Sobre brincadeira e arte

<span class=”hidden”>–</span>Alan Azevedo | ISA/Reprodução

Logo de início, pergunto à pesquisadora sobre a importância da brincadeira e como isso esteve e está presente em sua trajetória. 

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Quando eu era criança, era assim: gostava muito de brincar na floresta. Brincava de fazer acampamentos, eu brincava sempre de imitar a forma como os mais velhos fazem os festivais funerários (reahu) e isso me deixava contente. Apesar de ser pequena, quando eu estava bem e saudável, gostava de brincar de pescar do mesmo modo que os adultos.

Eu os imitava. Quando imitava a forma como os mais velhos agiam, eu aprendia. Quando brincávamos de fazer as grandes festas reahu entre as crianças, eu já cantava, ralava macaxeira, eu já fazia tudo isso. Hoje nos pintamos, nos enfeitamos com folhas perfumadas de puu hanak (espécie de planta amazônica), tecemos cestos rasos para pescar, tecemos cestos fundos para carregar lenhas e outras coisas, tecemos redes, acendemos a fogueira.

Nós fazemos muitas outras coisas. Nós cantamos, fazemos diálogos cerimoniais, tomamos yãkoana (pó alucinógeno usado pelos xamãs e feito a partir da planta Virola sp.) e dançamos juntos,  da mesma forma como nossos antepassados faziam.

Fiquei emocionada ouvindo, especialmente por saber que Ehuana continua brincando e ensinando. A brincadeira não é apenas algo de uma fase inicial da vida, mas um exercício de toda existência. A arte, aí, pode ser compreendida como uma das técnicas do brincar, como o manejo pelo qual transmutamos nossas dores e medos em movimentos para conseguir seguir em frente.

Embora os próprios modos de viver indígenas sejam indissociáveis das artes, também temos outras expressões artísticas concomitantes. Ehuana é um exemplo disso. Pulsa em suas obras a profunda conexão com a floresta, a um ponto em que o dentro e fora se entrelaçam. Desse espirar e inspirar dos sonhos e da floresta que seus desenhos surgem.  Na delicadeza das cores e dos traços, ela refloresta nosso imaginário.

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Se vocês verem a forma como nós, Yanomami, pensamos, se vocês verem isso irão nos ajudar. Eu penso sobre isso quando faço minha arte.

Sobre luta 

Imagem de mulher indígena, Ehuana Yanomami.
<span class=”hidden”>–</span>Victor Moriyama/Reprodução

Assim como as brincadeiras, suas lutas também iniciaram cedo. Ela conta que foi aprendendo aos poucos a se posicionar publicamente, em seu próprio território e fora dele, ainda que inicialmente com medo e vergonha. Esses sentimentos, que coincidem na língua Yanomam, ficaram em segundo plano à medida que outras preocupações vieram. 

Se nós, mulheres, lutarmos, nós talvez seguiremos, iremos falar nossas palavras aos napëpë (não indígenas). Os napëpë teimam em chegar em nossas terras. Apesar de ser nossa terra, eles chegam e passam a chamar de suas terras. Há muito tempo, nós Yanomami já vivíamos ali, porém, como eles insistem em entrar em nossas terras, eu quero falar, eu quero lutar.  Eu quero defender a floresta. Se nós não defendermos a floresta, quando aqueles napë destruírem a floresta, quando acabarem nossos direitos, vamos sofrer. Não aceito isso. Então é assim que eu luto.

Sobre ser mulher

Ela frisa que não segue só e que tem buscado incentivar outras parentas Yanomami para que também aprendam a falar em público, para que sejam lideranças junto a ela. Conta que esse processo não se fez sem barreiras, uma vez que mulheres indígenas também são atingidas pelo machismo, recrudescido pelas demais violências coloniais.

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“Falem! Vamos lutar! Sigam fortes!” É isso o que eu digo a elas: “Se eu tiver sozinha, não consigo chegar, alcançar. Levantem suas vozes! Vamos levantar as nossas vozes!” 

Ehuana comenta que, em muitos casos, o próprio casamento funciona como esse entrave à liberdade de mulheres, seja de seu direito de ir e vir, seja de sua ação como ativistas, artistas, pesquisadoras.

Agora sou solteira, viajo sozinha. Eu não preciso pedir autorização, não digo: “Marido, posso ir?” Eu apenas aviso a comunidade: “Awei, meu povo, eu vou para São Paulo, para Nova York, irei lutar em Brasília” e assim eu só vou e luto. “Vou falar em nome de nosso povo, estou indo para que possamos viver bem, vocês fiquem atentos.” É só isso o que fico explicando, não preciso de autorização.

Eu fiquei muito tocada e inspirada com essa fala. Cada uma de nós, à sua própria maneira, elabora essas questões por meio da arte, pesquisa e ativismo. Comento com ela que a colonização tem muitas mentiras e promessas que são apresentadas como algo bom, que deve ser buscado a qualquer custo. Enquanto nos dizem que é bom o desenvolvimento, o progresso, o garimpo, a mineração, dizem também que o casamento é a melhor coisa que pode acontecer na vida das mulheres, que se isso fracassar é o nosso fim.

Rimos juntas quando brinco que talvez o inverso seja mais realista, que talvez o final feliz não seja o começo do casamento, mas em alguns casos, quando chega ao fim essa idealização. É a partir desse fim que muitos outros (re)começos se tornam possíveis.

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Sobre (falta de) escuta

Imagem de mulher indígena, Ehuana Yanomami.
<span class=”hidden”>–</span>Claudio Tavares / ISA e Tayná Uráz / Hutukara / ISA/Reprodução

Refletimos juntas que talvez combater aquilo que se apresenta explicitamente como “mal” seja algo mais evidente do que estar alerta às violências que se apresentam em nome do bem, do amor, do casamento, da igreja, do progresso e do desenvolvimento. Dialogando com essa questão, Ehuana lembra de uma situação que aconteceu próximo da região onde morava quando criança, em que, após a chegada de missionários, viu que a maioria dos xamãs dali havia deixado de fazer xamanismo. 

Os missionários gostam de acabar com os xamãs. Eles gostam de dizer como o deus deles é o único. Quando eu era pequena, morei com minha mãe em outra comunidade, e já que eu gosto de escutar histórias, eu escutei isso. Eles gostavam de explicar que os missionários queriam fazê-los se tornarem napëpë. Por isso não queriam deixar os missionários se aproximarem de nossas casas. Lá haviam muitos xamãs antes, mas acabaram. 

Esse talvez seja um lembrete importante de nossos povos a todas as pessoas não indígenas, um convite para que estejam sensíveis e alertas contra todas as monoculturas, da terra, da fé, do pensamento, um chamado para que lutem conosco por mundos e sonhos tão diversos quanto as florestas.

Imagem de mulher indígena, Ehuana Yanomami.
<span class=”hidden”>–</span>Claudio Tavares / ISA e Tayná Uráz / Hutukara / ISA/Reprodução

Nós, Yanomami, guardamos o pensamento de Omama (o criador dos Yanomami), que colocou tudo isso. Temos os xapiri (os espíritos auxiliares dos xamãs), aquilo que eles colocaram. Por isso nós pensamos que, se os napë acabarem conosco, se acabarem com os xapiri, então tanto os napë quanto nós, Yanomami, todos iremos morrer afogados pelas grandes águas. É isso o que os xapiri dizem, eu sei. 

Nós Yanomami sabemos escutar. Não, não fizemos a floresta. Nós defendemos a floresta. Nós sabemos escutar as palavras de Omama. Sabemos escutar as coisas como Omama nos ensinou, mas os napëpë não escutam, não entendem. Eles até escutam, mas por outro lado eles não se preocupam de fato: “hum… eu escutei, mas não entendi direito, estou apenas prestando atenção em destruir a floresta”. 

“Agora sou solteira, viajo sozinha. Eu não preciso pedir autorização. Eu só vou e luto”

A conversa entre Geni (acima) e Ehuana, com o apoio do Instituto Socioambiental

Eles falam com os Yanomami, falam que querem viver em uma terra saudável, mas eles apenas destroem a floresta, é isso o que costumam fazer. Os napëpë não sabem escutar. Eles apenas ficam com o pensamento fixo em suas mercadorias. Por outro lado, alguns escutam. Os napë têm de todos os jeitos, alguns são amigos e escutam, outros estão com a gente, mas outros não sabem ouvir, já que ficam apenas atentos às suas mercadorias.

É com esse convite para a escuta e para o envolvimento nas lutas por “mundos onde caibam vários mundos” que finalizo, deixando com vocês um poema que brotou em mim após escutar a constelação de forças que é Ehuana.

Onde o garimpo extrai, 

Ehuana faz plantação 

Onde há desmatamento, 

Ehuana faz reflorestamento 

Onde há violência, 

a parenta traz colo, arte e alegria 

Onde há prisão, 

Ehuana trilha caminhos de liberdade 

Seus desenhos, suas palavras 

e seu sorriso semeiam a chuva, 

a terra e a vida,

Viva Ehuana Yanomami!

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