Maira Caleffi: a mastologista referência na cura do câncer de mama

Todos os carros acabavam assaltados nas proximidades de um posto de saúde em uma das periferias de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Todos exceto um – o da doutora Maria Caleffi. Apelidada de ‘Doutorinha’ pelos pacientes do posto, a médica, ainda recém-formada, ganhou o carinho da população pelo olhar cuidadoso com todos que passavam por seu consultório.

Não era a primeira experiência dela em comunidades carentes. Nos primeiros anos da graduação em Medicina, na PUC-RS,  no início dos anos 1980, Caleffi passou três anos atendendo num bairro conhecido como Morro da Maria Degolada – assim batizado por conta de um feminicídio ocorrido no fim do século 19. “A experiência de atender pessoas com menos acesso moldou a minha vida inteira”, relembra.

A trajetória de Maria Caleffi

Desde cedo, Caleffi sabia que queria trabalhar na área de saúde – só não sabia ainda em qual profissão. Inspirada em uma amiga, e com receio de não ser aprovada no vestibular de medicina, se inscreveu em Farmácia. Acabou aprovada nos dois cursos, fez as duas graduações ao mesmo tempo.

“Eu não tinha nenhuma inspiração próxima a mim, ninguém na minha família próxima era médico. Meus pais nem tinham faculdade, mas sempre me estimularam muito a estudar”, conta Caleffi. “E sempre fui muito estudiosa, eu era metódica, focada e disciplinada – dancei balé a vida toda, então isso me ajudou.”

Com o currículo de medicina em mãos, ela passou em um concurso da Secretaria Estadual de Saúde, que a levou de volta aos postos comunitários – e ao apelido carinhoso de “doutorinha”. Depois de concluir a residência em Ginecologia e Obstetrícia, o foco nos estudos a levaria para longe do Brasil. Em Londres, especializou-se em Mastologia no tradicional Guy’s Hospital.

“Na capital inglesa, concluiu o doutorado pela Universidade de Londres e seguiu para os Estados Unidos, onde realizou um pós-doutorado em genética e câncer de mama. Voltou ao Brasil como chefe do setor de mastologia do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, no início dos anos 1990, com dois filhos pequenos e uma urgência: transformar a realidade de mulheres que morriam de um câncer tratável por falta de acesso.

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“Quando voltei, não conseguia entender por que tanta gente pobre morria. Por que essas pessoas não tinham apoio psicológico? Essa história, que hoje em dia é óbvia para muita gente, não era naquela época.”

Um legado pela saúde

Se o câncer de mama podia ser vencido com informação, diagnóstico precoce e tratamento, Caleffi colocou-se à frente da luta para ampliar o caminho da cura. Em 1993, quando a palavra “câncer” ainda soava como sentença de morte, a médica criou um grupo de apoio formado por colegas, psicólogos e mulheres diagnosticadas com a doença. As reuniões semanais, que também incluíam familiares, tinham como objetivo oferecer informação e suporte emocional, em uma época em que ainda se falava pouco sobre letramento em saúde.

Aquelas mulheres, que haviam enfrentado a doença, formaram um grupo de voluntárias, com o intuito de repassar informações à população gaúcha sobre a saúde da mama. E, assim, surgiu, em julho daquele ano, o Instituto de Mama do Rio Grande do Sul (IMAMA), uma organização sem fins lucrativos, sob a presidência de Caleffi.  “Foi uma espécie de revolução, porque, na época, pouca se falava sobre voluntariado”, diz a mastologista.

A rede cresceu, ajudou a articular políticas públicas e se transformou, no início dos anos 2000, na primeira Organização da Sociedade Civil de Interesse público na área da saúde. E dali, surgiu uma ideia: levar o modelo do Imama para outros estados, por meio de uma federação – a Femama (Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama).

“Começaram a me falar ‘ah, vamos fazer outros institutos da mama’, e já havia outros se formando. Então pensamos na questão da federação. Se existe a Fiesp, que é uma federação das indústrias, que se juntaram para se fortalecer, poderíamos fazer o mesmo. Chamamos uns advogados e montamos a federação”, conta.

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“Escolhemos critérios para formar esse corpo, cada instituição teria seu DNA e o CNPJ. Chegamos a 76 organizações dentro do mesmo guarda-chuva. Eu não estava brincando quando eu achava que a sociedade civil tinha que ser empoderada, tinha que ter voz”.

A força da FEMAMA

Sob a liderança de Caleffi, a federação teve papel fundamental na aprovação de leis históricas, como a Lei da Mamografia, que garante o direito à realização do exame a partir dos 40 anos no SUS; a Lei dos 60 Dias, que determina o início do tratamento oncológico em até dois meses após o diagnóstico; e a Lei dos 30 Dias, que fixa o prazo máximo para confirmação diagnóstica após suspeita de câncer.

Também ajudou a articular a Lei do Registro Compulsório, que obriga hospitais públicos e privados a notificarem novos casos de câncer ao Ministério da Saúde.

“Aos olhos do legislativo, a lei dos 60 dias era inconstitucional. A gente foi brigando, brigando,  até que, em 2012, conseguimos com a ajuda de senadores e deputados, aprovar essa lei. Meu legado é dizer que o tempo é fundamental na jornada do câncer.”

Além disso, a Femama luta pela inclusão de testes genéticos para detecção de mutações nos genes BRCA1 e BRCA2 no SUS – que pode antecipar o diagnóstico –, pelo tratamento multiprofissional de pessoas com câncer e pela ampliação da cobertura mamográfica para pelo menos 75% da população-alvo no país.

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Com tempo e muito trabalho, o brilho de Caleffi voltou a ultrapassar as fronteiras do país. Em 2012, entre centenas de candidatas, de diversos países, ela foi eleita para o conselho diretor da Union for International Cancer Control (UICC), com sede em Genebra — uma das principais organizações internacionais dedicadas ao controle do câncer. 

Anos depois, atuou também como consultora da Organização Mundial da Saúde, contribuindo com o desenho do Global Breast Cancer Initiative, programa que estabelece três frentes fundamentais: educação para detecção precoce, diagnóstico rápido e acesso a tratamento completo e 

“Podemos salvar 2,5 milhões vidas [no mundo], por ano, se fizermos esse passo a passo dos três eixos. E o Brasil é signatário desse acordo, o Ministério da Saúde assinou e concorda que precisa ser assim. Só que ele não faz isso”, critica.

Nos últimos anos, Caleffi tem se debruçado sobre dados e evidências para embasar decisões públicas. Com uma equipe multidisciplinar, a Femama criou a Plataforma Prisma, que cruza informações de três grandes bancos de dados sobre câncer para monitorar o percurso das pacientes no sistema de saúde. A ferramenta revela, com precisão, onde o tempo se perde — e onde vidas ainda estão sendo sacrificadas por atrasos evitáveis.

Desde 2022, Caleffi atua também como presidente do conselho de administração do Instituto de Governança e Controle do Câncer (IGCC). E agora se prepara para passar o bastão da presidência da Femama. “Já existe uma estrutura de continuidade, chegou minha hora de ir para outro lugar. Seguirei nos bastidores, como membro do conselho.”

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Ao analisar a própria carreira, Caleffi se orgulha, com razão, da própria trajetória – e vibra com a superação dos preconceitos que sofreu, no Brasil e no exterior, por ser mulher e latina. “Foi um perrengue a minha vida inteira para ser quem eu sou. Eu era muito jovem, cirurgiã, latina, mulher. E voltei ao Brasil com essa ideia louca de voluntariado. Acho que sempre passei pelo menos 30% do meu tempo como voluntária. Até hoje é assim, às vezes foi até 50%”, finaliza.

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