Por muitos anos, a figura da avó foi tratada quase como uma caricatura: uma senhora de idade, de olhar terno e sorriso afetuoso, que passa horas fazendo tricô em sua cadeira de balanço. Guardiã dos saberes ancestrais, ela é também quem prepara as melhores guloseimas para as crianças e conta as histórias da família.
Embora essa imagem, semelhante à personagem Dona Benta, de Monteiro Lobato, seja acolhedora, há uma parcela (quase invisível) de mulheres que nos últimos anos, andam recusando esse estereótipo.
Rosana Lucena, de 57 anos, tem cabelos cor-de-rosa, trabalha como assessora parlamentar e representa o oposto desse modelo. Foi mãe aos 20 e precisou equilibrar a faculdade com as exigências da família. Vinte e seis anos depois, tornou-se mãe novamente e, no ano seguinte, avó. Mas, diferentemente do que se esperava, ela rejeitou de imediato o papel de protetora que lhe foi atribuído.
“Dizem que a gente tem esse instinto protetor, mas acho isso uma bobagem. Deixei bem claro que não tinha essa disponibilidade. Não por falta de amor, mas porque tenho minha vida e tarefas para cumprir”, afirma.
O tão valorizado tempo livre é dividido entre descanso, saúde e a dedicação ao filho mais novo, de 10 anos, com quem gosta de compartilhar leituras silenciosas — reflexo de um lar tranquilo.
Por trás da avó disponível, esconde-se uma lógica conhecida por muitas mulheres: a de que cuidar é um verbo feminino. A expectativa de que, uma vez concluída a tarefa de criar os filhos, uma mulher também precise assumir o papel de “mãe substituta” dos netos muitas vezes não é negociada, mas pressuposta por toda a sociedade.
Essa cobrança, por vezes silenciosa, é, na verdade, uma extensão do trabalho não remunerado que todas carregam há gerações. “Faço parte de uma nova onda de avós que são afetivas, mas não personificam o padrão imposto a nós”, reflete Rosana.
Anular a si mesma
Tereza Dantas, de 61 anos, também faz parte dessa onda. Quando soube da chegada do novo membro da família, sentiu um amor imenso — era como voltar no tempo e rever a filha pequenininha. “Com ele, veio uma conexão profunda e a sensação imensa de gratidão”, revela. Dos quatro aos seis meses, o bebê ficava por volta de oito horas por dia em sua casa, já que os pais precisaram voltar ao trabalho.
Para muitas, assumir um compromisso desse tamanho significa abrir mão, mais uma vez, de si mesmas: de planos, do tempo livre e até da identidade construída na maturidade. Conforme os meses foram se passando, foi justamente isso que Tereza percebeu: “Deixei tudo o que era meu de lado para dar conta do pequeno. Até que minha filha se deu conta e o colocou na escolinha. Foi a melhor coisa que ela fez por nós”, afirma, aliviada.
Uma pesquisa realizada pelo Instituto Ipsos entre a população britânica aponta que 14% dos avós já tiveram que reduzir suas horas de trabalho ou até se demitir para tomar conta dos netos — tendência que acaba atingindo muito mais as mulheres (19%) do que os homens (8%).
“Quando pensamos em avós cuidadoras, imaginamos um cenário em que elas estão aposentadas ou fora do mercado de trabalho, mas nem sempre é assim. Por isso, nem tudo são flores: se por um lado os netos podem ser um grande aporte de afeto e companhia, por outro, eles podem afastar as mulheres de seu ciclo social, interesses e desejos de investir no próprio futuro”, explica a psicóloga Magda Tartarotti.
Ressignificando papéis
Envelhecer, em 2025, já não significa desaparecer socialmente ou viver apenas em função dos filhos. Pelo contrário: pessoas que já passaram dos 60 estão cada vez mais ativas. “Voltar a estudar, se ocupar com atividades produtivas e viajar com as amigas se tornam possibilidades reais no cotidiano delas”, reflete Magda.
“É um fator geracional que também tem a ver com o aumento da emancipação feminina — quer dizer, mulheres se importando mais com seu próprio bem-estar.”
No Brasil, a expectativa de vida das mulheres já beira os 80 anos. O que significa que muitas que se tornam avós aos 50 ainda têm mais três décadas de vida pela frente.
O envelhecimento ativo, conceito defendido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ganha corpo nessa geração que vive mais, com mais acesso e mais consciência sobre seus direitos. “Vivemos em um sistema patriarcal que nos exige e nos explora. Por isso, a gente precisa transformar as relações com o trabalho, com os afetos, com a casa, com os filhos”, aponta Rosana. “A prioridade agora, quando tenho tempo livre, é cuidar de mim.”

E o estilo de vida das novas avós não têm a ver com falta de vínculo, apenas com fronteiras emocionais mais definidas — ainda que essa nova configuração por vezes venha acompanhada da famosa culpa “materna”.
“No começo, quando ele foi para a escolinha, eu fiquei um pouco confusa porque parecia que a responsabilidade era minha. Meu marido não sentiu essa pressão. Aí eu repetia a mim mesma que ele não é meu filho”, comenta Tereza.
Rosana e Tereza concordam em um ponto essencial da conexão com o outro: é preciso estar bem para viver um tempo de qualidade e conseguir dar toda a atenção requerida aos garotos. “O amor é tão grande que você quer estar inteira com seu neto. É uma fase tão intensa que você reaprende seus próprios limites”, conclui Tereza.
Quem escolhe o futuro?
Enquanto algumas mulheres conseguem estabelecer limites, outras não têm essa possibilidade. Em muitos contextos — especialmente em famílias de baixa renda — a jornada da presença é inevitável.
Um estudo da Universidade Federal do Triângulo Mineiro traçou o perfil dessas avós co-criadoras dos seus netos e revelou que a maioria é composta por aposentadas (67,3%) e com ensino fundamental incompleto (52,8%). A principal razão apontada para assumir essa função foi a impossibilidade dos pais pararem de trabalhar. Esse cenário evidencia que a liberdade de dizer não ao amparo é, na verdade, um privilégio.
O papel da avó, como tantos outros atribuídos às mulheres, está em transformação. Em vez de repetir modelos prontos, muitas estão criando seus próprios caminhos, onde o cuidado pode existir sem anulação, e o amor, sem sobrecarga. Ao dizer “sim” a si mesmas, essas mulheres não deixam de ser avós — apenas se permitem ser mais do que isso. “Avós independentes deixam o legado de que usufruir da vida não tem idade”, conclui Magda.
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