A perseverança sempre guiou a trajetória de Carla Salle. Na novela Guerreiros do Sol, recém-lançada no Globoplay, a atriz vive Soraia — uma mulher flagelada da seca que cresceu nas ruas.
A personagem, criada a partir desse cenário comum do sertão nordestino dos anos 1930, atravessa a trama com o vigor de quem carrega a própria sobrevivência como única motivação. Para Carla, interpretá-la foi mais do que compor uma figura ficcional: revelou-se um mergulho em sua própria história.
A atriz de 33 anos vem de uma linhagem de mulheres que migraram do sertão pernambucano para recomeçar do zero. A avó materna, Ivonete, criou as filhas sozinha e ensinou netos e netas a “ir atrás do que querem sem medo de levar não”.
E foi justamente do âmbito familiar que nasceu a faísca da nova empreitada: a atriz soube da produção por acaso, por meio de uma reportagem compartilhada pelos tios no grupo da família. A matéria falava sobre as filmagens da novela em Serra Talhada, interior de Pernambuco — cidade natal de sua avó. Ao descobrir que o projeto se inspirou no livro de Frederico Pernambucano, Carla comprou a obra, leu em poucos dias e decidiu que precisava fazer parte daquilo tudo.
“Ela começa a conseguir as coisas que quer através da sexualidade. Não como um sinônimo de inferioridade, mas isso faz dela uma mulher empoderada e consciente dos poderes que tem.”
Carla Salle, atriz
“Mandei um áudio para o diretor [Papinha] falando da minha conexão com o sertão, da minha família, o quanto eu queria muito contar esse tipo de história”, relembra. Em seguida, escreveu também para o autor George Moura, com quem já havia trabalhado na série Onde Nascem os Fortes, de 2018. Não pediu um papel específico, queria apenas a chance de fazer um teste.
A audácia rendeu frutos: coube a ela encarnar Soraia, uma retirante confinada no Centro de Flagelados, lugar para onde autoridades da época enviavam essas pessoas com a promessa de abrigo e dignidade. Na prática, eram espaços de confinamento e descaso, uma tentativa higienista de esconder a miséria.
“Esses centros ficaram conhecidos como o holocausto brasileiro”, diz Carla, mencionando um capítulo pouco explorado da história nacional. Sem passado nem futuro, Soraia descobre na própria sexualidade uma arma de negociação e sobrevivência. Carla mergulhou em leituras como Teoria King Kong, de Virginie Despentes, para compreender o que se chama de “capital erótico” — não como submissão, mas como ferramenta de autonomia.
“Ela começa a conseguir as coisas que quer através da sexualidade. Não como um sinônimo de inferioridade, mas isso faz dela uma mulher empoderada e consciente dos poderes que tem.”
Esse tipo de personagem não é estranho ao repertório da atriz. Desde o início da carreira, Carla tem dado vida a mulheres complexas, inconformadas, que testam os limites do seu tempo. Leila, em Totalmente Demais (2015), é uma jovem feminista em meio à redação de uma revista de moda. Em Onisciente (2020), da Netflix, Nina é protagonista de uma distopia tecnológica. Mais recentemente, em Rio Connection, vestiu o espírito livre de uma mulher nos anos 1970.
Além disso, Guerreiros do Sol nos apresenta um sertão com personagens mulheres à frente da ação, uma reinterpretação do cangaço que tem estado em evidência na dramaturgia brasileira — caso também de Maria e o Cangaço (2025), com Isis Valverde. Carla enxerga esse movimento como um avanço necessário, e não uma distorção da história, mas uma reinterpretação simbólica.
“A gente não tinha essas referências das mulheres nesse lugar de tomada de decisão”
Carla Salle, atriz
“A gente não tinha essas referências das mulheres nesse lugar de tomada de decisão. Então o que estamos fazendo é reinventar o imaginário audiovisual que foi construído até hoje. Acho legal criar um imaginário cinematográfico novo em que as meninas irão se enxergar na tela não como personagens submissas, ou escadas de personagens masculinos, mas como protagonistas.”
Se o imaginário coletivo está mudando, muito se deve também ao imaginário íntimo — e aí entra a figura de Ivonete. Sua avó é uma das grandes referências de força na trajetória da atriz. Migrou de Serra Talhada para o Rio de Janeiro com os pais e seis irmãos durante a seca. Dormiram em redes armadas sob caminhões, cruzaram estradas improvisadas e reconstruíram a vida do zero.

Mais tarde, Ivonete se tornou professora, depois psicoterapeuta holística, e criou as filhas praticamente sozinha. É o grande orgulho da neta: “Ela foi muito transgressora na época dela. Uma referência de liberdade, de força, de feminino muito forte. Ela passou isso para as filhas, que passaram para a gente. Esse ímpeto de ir atrás do que quer sem medo de levar um não.”
“Eu tenho a expectativa de me tornar uma mãe que trabalha”
Carla Salle, atriz
Esse espírito, segundo Carla, moldou não só suas escolhas profissionais, mas a forma como encara a vida. Agora, à espera do primeiro filho, fruto do relacionamento com o ator Gabriel Leone, sente que essa herança se expande. “Eu tenho a expectativa de me tornar uma mãe que trabalha”, diz. “Eu amo trabalhar. O trabalho me motiva, me ilumina. Sempre tive essa referência na minha família: mães que trabalham.”
A artista está consciente da fase de transição que vive — entre a estreia de um dos projetos mais significativos de sua carreira e a gestação de um novo papel, o mais transformador. “Me sinto num momento de muita luz. Estrear essa série foi uma realização pessoal. E viver esse processo da maternidade ao mesmo tempo é uma experiência muito gratificante.” Talvez seja essa coragem silenciosa, persistente, que tenha feito Carla Salle uma das vozes mais autênticas e afiadas da sua geração.
Ficha Técnica
MAKE & HAIR
Mario Marques – @mariomarcs | Assistente: José Cavalcanti – @_jcavalcantti
STYLIST
Juliana Bordin – @bordinjuliana | Assistente: Malu Lucatelli – @malucatelli
FOTÓGRAFA
Bruna Castanheira – @brunacastanheira | Assistente: Caio Porto – @caiop0rto
DIREÇÃO DE ARTE
João Pessoni – @joaopessoni
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