Tenho que abrir a coluna de hoje com um disclaimer: por algum motivo, nunca abracei a personagem Sydney Adamu de O Urso como deveria. Sua relação com o chef genial Carmy “Bear” Berzatto começou como admiração, mas logo escalou para uma parceria em que Sydney, mesmo sem ter uma fração da vivência profissional dele, já se comportava como igual — e mais do que isso, como alguém pronta para liderar.
Nada mais millennial e, confesso, profundamente irritante. Por isso, não entendia o que todos viam nela. Isso muda na quarta temporada da série, já disponível na íntegra no Disney+. Falar de Sydney é também falar de Ayo Edebiri, sua intérprete, que não apenas entrega uma performance de altíssimo nível como também tem um papel criativo fundamental na série.
Ela escreveu um dos episódios mais interessantes e tocantes da temporada (junto com Lionel Boyce, que interpreta Marcus) e já havia dirigido o premiado “Napkins”, episódio da terceira temporada que reconta a jornada de Tina e rendeu a Liza Colón-Zayas o Emmy de Melhor Atriz Coadjuvante. Ou seja, Ayo é uma diretora e roteirista de mão cheia — e merece nossa atenção.
Dito isso, vale dizer: nesta quarta temporada, a cozinha do O Urso está mais quente, as ambições mais altas, mas algo essencial se perde entre pratos meticulosamente montados e as crises existenciais de Carmy. A série, que começou como uma crônica apaixonada sobre trauma, comida e redenção, agora flerta perigosamente com o autoengano ao mergulhar em suas obsessões estéticas. E, no meio desse redemoinho, Sydney Adamu finalmente se revela não só como igual a Carmy, mas talvez como a peça mais importante do restaurante Bear.

Desde o início, Sydney precisava ser vista. Não só como a jovem chef promissora com talento nato, mas como uma mulher negra ocupando, sem pedir licença, uma cozinha branca, masculina e barulhenta. Seu arco nas duas primeiras temporadas foi comovente: a busca por reconhecimento, o equilíbrio entre humildade e ambição, a frustração por ser subestimada — inclusive por Carmy, que dizia valorizar sua parceria, mas frequentemente a deixava à margem.
Carmy não fazia isso por preconceito, mas porque é tão emocionalmente quebrado que não tinha energia para lidar com as mudanças que Syd trazia. A série era sobre ele. Mas justamente por isso, Sydney se torna o coração emocional da narrativa — o contrapeso à inquietação caótica de Carmy e ao senso prático de Richie. Ela é o ingrediente que faz o restaurante funcionar de verdade, mesmo quando não está no comando direto.

A nova temporada começa com Carmy revirando uma crítica negativa e se comparando ao protagonista de O Feitiço do Tempo. A referência não é só simbólica: a série está presa em um ciclo. Carmy continua se autossabotando, agora com camadas extras de sofrimento estético. Richie busca sentido em discursos motivacionais e ternos caros. Todos lidam com o prazo de dois meses para dar lucro ou fechar as portas.
E Sydney? O dilema dela é claro: seguir carreira solo e se afastar da toxicidade que cerca a família Berzatto ou mergulhar de vez no caos e se tornar parte do clã. Cada argumento que justifica sua saída vai sendo desconstruído ao longo dos episódios. A demora em tomar uma decisão é agonizante — para ela e para nós. Mas há uma inversão importante: acompanhamos mais Sydney do que Carmy nesta temporada. E é aqui que Ayo Edebiri brilha como nunca. O Emmy que lhe escapou de Melhor Atriz pode estar só adiado.

Sydney representa o que O Urso tem de mais moderno e relevante. Mulher, negra, jovem e absurdamente competente — mas, paradoxalmente, ainda não é tratada como protagonista. Mesmo quando assume a liderança da cozinha, o brilho é negado. Não por muito tempo: o prato mais elogiado do Bear é dela, não de Carmy. Ela é a estrela, ainda que a narrativa resista em reconhecer isso por completo.
O drama é que esse protagonismo vem no momento em que a série parece entrar em curva descendente. As primeiras temporadas eram agitadas e tinham alma. Hoje, tudo é mais bonito — mas menos honesto. Há uma distância emocional crescente. A série está cheia de cenas impactantes que, no fundo, não dizem tanto assim.
Carmy continua sendo pura emoção, mas é Sydney quem carrega a complexidade real. Sua fome vai além da culinária — ela quer ser reconhecida por inteiro, como ambiciosa, brilhante, falha, humana. E talvez o maior spoiler da temporada seja esse: Carmy, diante do fracasso em conquistar sua estrela Michelin, decide que precisa sair. Assume que o sucesso do restaurante vem de Syd, que talvez ela deva liderar sozinha. Um gesto nobre? Ou uma fuga com pitadas de ciúmes?

A reviravolta final é simbólica e cruel: assim que se confirma que a chef agora é Syd, o restaurante recebe uma crítica elogiosa — e não é sobre ela. É sobre Marcus. Ela não celebra. Só digere, mais uma vez relegada ao segundo plano. Será que a série, na próxima temporada, terá coragem de mergulhar na misoginia estrutural que isso representa?
Sim, O Urso ainda é uma das melhores séries da atualidade — mas seu maior pecado talvez esteja no posicionamento como “comédia”, o que esvazia suas conquistas nas premiações. E o problema mais urgente é o risco de se perder em sua própria mise-en-scène. Porque, no fim das contas, os pratos mais inesquecíveis são aqueles que têm alma. E Sydney, enfim, merece ser o prato principal.
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