Embora Valeria fosse sua esposa, ele a chamava de “mamãe”. No livro Caderno Proibido, de Alba de Céspedes, a personagem principal vive um casamento em que seu marido a reduz às figuras materna e dona de casa. Essa dinâmica, porém, não é exclusividade da ficção.
Seja ao marcar consultas médicas, preparar refeições, administrar compromissos ou tantas outras tarefas, as mulheres acabam sendo vistas como mães em seus relacionamentos. Para seus parceiros, cabe a elas garantir a manutenção da vida doméstica e o cuidado com a saúde e bem-estar.
Por que tantos homens tratam suas parceiras como mães?
Sigmund Freud analisa como a criança (geralmente do sexo masculino) desenvolve desejos inconscientes pela mãe enquanto rivaliza com o pai – o Complexo de Édipo. Para Freud, os homens poderiam transferir, de forma inconsciente, características do vínculo materno para suas parceiras na vida adulta. Eles buscariam nelas acolhimento, proteção e cuidados que remetem à infância, idealizando a figura feminina como uma substituta da mãe.
Essa dinâmica, porém, não surge repentinamente. “Meninos crescem em ambientes onde as mulheres – geralmente mães – assumem responsabilidades excessivas pelo bem-estar emocional e prático da casa. Ao entrar em um relacionamento, eles podem transferir para as esposas essa expectativa de cuidado”, afirma Marília Scabora, psicóloga e fundadora da Tribo Mãe.
Mulheres ficam sobrecarregadas com desigualdade de papéis
O cenário no Brasil confirma a desigualdade de papéis. Enquanto elas dedicam cerca de 21,3 horas semanais para esse tipo de atividade, eles gastam 11,7 horas, segundo o IBGE.
Cozinhar, lavar, passar e realizar tantas outras tarefas fica a cargo, principalmente, das mulheres, que fazem mais de 75% do trabalho não remunerado, segundo a organização global contra as desigualdades Oxfam (Comitê de Oxford para o Alívio da Fome).
É nesse ponto que o casamento parece beneficiar apenas um dos lados. Um estudo da Universidade de Toronto revelou que homens casados têm o dobro de chances de envelhecer de forma saudável em comparação com solteiros.
Para as mulheres, a situação ganha complexidade: as que nunca se casaram ou as que estavam casadas tiveram duas vezes mais chances de envelhecer de forma saudável em comparação com as entrevistadas que ficaram viúvas ou divorciadas durante o período do estudo.
Esse contraste pode ser explicado pela sobrecarga feminina no casamento. “Os homens, em geral, buscam menos ajuda médica ou emocional. No casamento, as mulheres frequentemente assumem o papel de incentivá-los a adotar hábitos saudáveis, como fazer exames regulares, cuidar da alimentação e reduzir comportamentos de risco. Essa longevidade masculina reflete, muitas vezes, um desequilíbrio relacional, em que a mulher acumula responsabilidades, incluindo o papel de ‘gestora da saúde’ do parceiro”, explica a especialista.
Além do trabalho físico, elas enfrentam a carga mental – o peso invisível de planejar e organizar todas as demandas da casa e da família. Esse esforço constante resulta em estresse, sobrecarga e, muitas vezes, ressentimento.
“A mulher se sente desvalorizada como parceira e sobrecarregada com tarefas que deveriam ser compartilhadas. Para o homem, essa postura dificulta o amadurecimento emocional e a construção de autonomia. A longo prazo, o desequilíbrio compromete a intimidade, desgasta a relação e pode levar ao fim do casamento”, destaca a psicóloga.
Não à toa, um estudo da Universidade de Toronto apontou que mulheres solteiras ou sem interesse em um parceiro relataram níveis mais altos de satisfação com a vida. “Mesmo com a evolução dos direitos e papéis femininos na sociedade, o trabalho doméstico e o cuidado com a família ainda são vistos como ‘funções naturais’ das mulheres em muitos contextos.”
Freud acreditava que a superação do complexo de Édipo era fundamental para que o homem visse a mulher como uma parceira independente, e não como uma extensão da figura materna. “Uma relação conjugal saudável exige respeito mútuo, parceria e equilíbrio nas responsabilidades. Quando um dos parceiros é colocado no papel de cuidador parental, a conexão romântica e emocional fica comprometida”, diz Marília.
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