Aos 3 ou 4 anos, Rebeca Andrade descia a ladeira da rua de casa, na Vila Fátima, em Guarulhos (SP), dando estrelinhas. Com os irmãos, se pendurava em qualquer árvore e caminhava pelos galhos sem perder o equilíbrio. Era tanta energia que uma das tias decidiu perguntar à mãe da garota, Rosa Santos, se poderia levá-la para treinar ginástica artística no projeto Iniciação Esportiva da Prefeitura de Guarulhos, onde suas netas já treinavam.
Rosa nunca vetou as brincadeiras das crianças, apesar de ficar atenta aos possíveis perigos. E daquela vez não seria diferente. Quando chegou ao ginásio, Rebeca encontrou seu próprio parque de diversões.
“Nossa senhora, foi incrível! Para quem já subia em árvore, subir em uma corda foi muito tranquilo. Para quem vivia se pendurando em vários lugares, fazer flexão segurando na paralela também não foi um problema”, relembra Rebeca. “Eu estava no meu lugar! Já tinha até o corpinho de atleta, com perninha e bracinho duros, musculosos, tudo das brincadeiras da rua.”
O ginásio virou uma extensão da casa dela. E, entre uma brincadeira e outra, enquanto aprendia os movimentos da ginástica, a treinadora Mônica dos Santos viu naquela criança de voz doce e risada fácil, um talento promissor. Nascia ali a carreira da maior medalhista olímpica do Brasil. Com as conquistas nos Jogos de Paris, aos 25 anos, Rebeca acumula seis medalhas: dois ouros, três pratas e um bronze.
Percalços e saudades
Como trabalhadora doméstica, Rosa batalhou para cuidar do sustento dos oito filhos — Rebeca é a do meio, com uma diferença de dez anos do irmão mais velho. E era ele quem levava a garota a pé ou de bicicleta ao ginásio, em um trajeto de até duas horas. Com o dinheiro apertado e o tempo corrido, era impossível garantir a ida diária dela aos treinos.
E aí entram os dois treinadores que apostaram alto no talento de Rebeca: Keli Kitaura e Chico Porath, que segue até hoje como seu treinador. Eles já hospedavam três jovens ginastas em seu apartamento, mais próximo ao ginásio, e decidiram fazer o mesmo pedido à mãe de Rebeca. “Comecei a passar a semana toda lá”, conta.
Pouco tempo depois, aos 10 anos, Rebeca se mudou para Curitiba, à convite dos dois treinadores. O ginásio de lá garantiria melhores condições para ela aprimorar o talento. Um ano depois, a aposta vingou: Rebeca Andrade virou atleta do Flamengo e se mudou para o Rio de Janeiro.
Naquela época, a ginasta ainda não recebia um valor alto para encerrar as dificuldades financeiras da família. Ainda assim, quando a filha precisava de colo, a mãe se virava para viajar de Guarulhos ao Rio. “A minha mãe sempre se fez muito presente, eu sempre ligava para contar quando havia acontecido alguma coisa ou estava cansada”, lembra.
“Quando a saudade estava maior, eu pedia ‘mãe, a senhora pode vir neste fim de semana? Tô com muita saudade’. E ela dava o jeito dela. Guardava dinheiro, ou pegava emprestado com alguma vizinha ou com os patrões dela, que eu amo muito e tenho como meus tios. Então, ela pegava o ônibus e ia me ver. Ela se virava.”
“Minha mãe é uma mulher branca e ela ensinou a gente a lidar com as situações com muito respeito, mesmo se a pessoa tivesse feito alguma coisa. E a gente lida com tanto respeito que a pessoa fica até com vergonha de fazer algo, sabe?”

A melhor mãe do mundo
Durante toda a entrevista, que durou 45 minutos — um tempo generoso dentro da disputadíssima agenda da atleta —, Rebeca mencionou a mãe mais de 30 vezes. Foi a mãe quem cuidou das finanças dela, quando ela ainda não queria lidar com banco e outras burocracias, e quem ajudou a construir a autoestima, tão presente. Na sessão de fotos, entre uma pose e outra, ao conferir o resultado na tela, a ginasta comentava, fazendo graça: “Nossa, eu tô muito linda, que diva!”.
“Minha mãe sempre falava como eu era bonita, então eu sempre me achei linda. A parte financeira, na infância, foi o mais complicado. Mas a gente sempre teve todo o amor e incentivo da família para fazer tudo”, conta. “Minha mãe é a melhor pessoa do mundo, sempre esteve lá para acolher e fortalecer. Sempre com a palavra certa. Ela é perfeita.”
Ela preparou a garota para não se deixar abalar nem mesmo com o racismo, caso algo acontecesse. “A minha mãe sempre falava o quanto a gente era bonito e forte, para não deixar ninguém colocar a gente para baixo, ou nos diminuir por conta da nossa cor. Então se para alguém eu ser negra é um problema, o problema não é meu, é do outro”, afirma.
“Minha mãe é uma mulher branca e ela ensinou a gente a lidar com as situações com muito respeito, mesmo se a pessoa tivesse feito alguma coisa. E a gente lida com tanto respeito que a pessoa fica até com vergonha de fazer algo, sabe?”
Orgulho negro
Em 2021, a ex-ginasta Daiane dos Santos contou sobre casos de racismo na Seleção Brasileira e nos clubes: “Comigo, houve situações na Seleção, nos clubes, de pessoas que não queriam ficar perto, que não queriam usar o mesmo banheiro! Aquele tipo de coisa que nos faz pensar: opa, voltamos à segregação. Teve muito isso dentro da Seleção”, disse em entrevista à revista Marie Claire.
Rebeca, no entanto, enfatiza que nunca vivenciou nenhum caso de racismo dentro da ginástica. “Eu nem sabia que a Dai tinha passado por isso. Só descobri quando ela começou a falar. Graças a Deus, eu nunca tive nenhuma experiência ruim, sempre foi um ambiente de muito respeito.”
Nas Olimpíadas de Paris, Rebeca recebeu elogios por se apresentar com um estilo de trança chamado Gypsy Braids e exaltar a estética afro-brasileira. A técnica substitui o nó na base capilar pelo uso de uma fibra orgânica ou humana, que resulta numa combinação entre tranças e cachos.
Doze anos atrás, nos Jogos de Londres, Rebeca alisava os cabelos. Ela garante que assumir o crespo natural nunca foi uma questão, mas que se inspirou na transição capilar de Lorrane Oliveira, amiga e colega da Seleção Brasileira de Ginástica.
“Eu sempre me achei muito linda, né? Só comecei a alisar meu cabelo porque eu queria ficar igual à minha irmã. Minha mãe amava meu cabelo, mas aceitou que eu alisasse. Aí virou um costume. Quem me inspirou a fazer a transição foi a Lorrane, porque ela também queria fazer. Aí quando ela colocou trança eu falei: ai, meu Deus, caraca, eu vou ficar linda de trança!”



Mente sã em corpo são
Não foi só a mãe que construiu a confiança e a maturidade emocional da atleta. A psicóloga Aline Wolff, coordenadora de preparação mental do Comitê Olímpico do Brasil (COB), trabalha com Rebeca há onze anos. “Ela foi me conhecendo, me descascando. Aos poucos fui criando confiança, me abrindo com ela. Percebi que eu poderia falar qualquer coisa, que ela não contaria para ninguém. E não só pela questão ética da profissão, mas porque ela via ali outro ser humano”, enfatiza.
A ajuda da psicóloga foi imprescindível durante as fases mais difíceis da atleta: as três lesões — em 2015, 2017 e 2019. Ao longo da carreira, Rebeca precisou fazer três cirurgias no ligamento cruzado anterior do joelho direito, e outra para retirar uma fibrose no mesmo local, o que impactou corpo e mente.
“Durante a recuperação, eu tive tempo para refletir sobre a minha carreira. Se a ginástica ainda era importante para mim, se eu queria seguir [ela pensou em encerrar a carreira]. É muito difícil para um atleta de alto rendimento passar oito meses sem treinar. Apesar de terem sido momentos difíceis, também serviram para me ensinar muita coisa.”

“Eu preciso descansar, cuidar do meu corpo, dar mais atenção a ele. Quero começar o ano renovada para saber como as coisas realmente vão fluir. Eu estou sem pressa.”
Em entrevista à Veja, Aline contou que Rebeca sentiu uma tristeza profunda, sem saber se daria conta de voltar. Mas, segundo ela, a garota recebeu apoio fundamental de toda a equipe para se sentir segura.
“A forma como as pessoas se preocupavam comigo foi um dos motivos para eu não desistir. Sempre fui muito talentosa, e isso gerava muita expectativa, as pessoas projetavam muitas coisas em mim. Mas em todas as minhas voltas, o mais importante para eles era saber se a Rebeca estava bem. E é por isso que eu tô aqui até hoje”, confirma a ginasta.

Rebeca ainda não tem certeza do futuro. Embora tenha dito que Paris seria sua última participação em Olimpíadas, ela já voltou atrás na decisão e descartou apenas a participação no solo — que lhe rendeu o ouro nos Jogos de 2024. “Eu preciso descansar, cuidar do meu corpo, dar mais atenção a ele. Quero começar o ano renovada para saber como as coisas realmente vão fluir. Eu estou sem pressa. Sei que Olimpíadas, você pisca e ela já está ali. Mas eu tô sem pressa”, conta.
A certeza, por enquanto, é conciliar melhor os treinos e as aulas de psicologia — uma inspiração que ela admite ter vindo de Aline. “Com certeza faço esse curso por causa dela! E quero seguir a mesma abordagem, que é TCC [terapia cognitivo-comportamental]. Eu gosto de saber como as pessoas funcionam em cada situação. Eu vivi isso a minha vida toda, mas uma coisa é viver, outra é ver alguém passar por isso”, afirma.
Se alguém estranhar olhar Rebeca Andrade em frente ao divã, ela garante que vai ser só por um momento. “Eu vou falar: calma, eu sou só sua terapeuta, uma pessoa normal. Aí ela se acostuma! A pessoa vai cansar de ver minha cara, vai conseguir se abrir”, conclui.
Créditos
TEXTO Carol Castro
FOTO Pedro Loreto
STYLING José Camarano
BELEZA Laurão
SET DESIGN João Pedro Schiavo
DIREÇÃO DE ARTE Kareen Sayuri
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